TOCA DO LEÃO

Cada poeta com sua patente

No dia do meu aniversário, recebi mensagem do Baraúna, poeta e cabo da Polícia Militar:

Grande confrade Mozart

Receba meu forte abraço

No dia do aniversário

Nesta estrofe congraço

O sentimento comum

Bebo uma dose de rum

Afeição sem embaraço

Estou lendo “Matadouro cinco”, de Kurt Vannegut. Em determinada página do começo do livro sobre a Segunda Guerra Mundial, lê-se: “Às vezes me perguntavam por que eu não tinha sido promovido a oficial do Exército, como se eu tivesse feito alguma coisa errada”. Fiquei imaginando por que o cabo Baraúna ainda patinava na patente de cabo, chegando ao fim da carreira na corporação. Pensei a respeito por um brevíssimo tempo. Em Minas Gerais, o cabo policial militar Célio Pedro Lourenço escreveu um poema chamado “Arame farpado”, onde relata sua insatisfação com as leis do Brasil e explica a rotina e as angústias vividas por um policial. “A Polícia apenas enxuga gelo”, constata o cabo mineiro em seu poema. O velho Baraúna é poeta de cordel e se inspira em outras pautas. Mas, pode ser, talvez quem sabe, ou não, que as corporações militares olhem os poetas com visões disciplinadoras. Daí botam os poetas no fim da fila das promoções. Essa é uma teoria que me passou feito um raio doido na minha mente, e desapareceu. Foi-se, mas deixou um rastro de pensamentos meio indisciplinados sobre a linguagem. Roland Barthes pensa que a língua é fascista, “porque obriga a dizer as coisas de um modo único, servindo assim ao poder”. No caso da poesia, essa forma de comunicação pretende operar “uma espécie de revolução permanente na linguagem”, ideia que não se enquadra nos regulamentos, sempre avessos aos atos radicais do pensar que alteram o senso comum.

Eu, na qualidade de reformador das forças armadas, criaria a função de poeta nas tropas, um cargo correlato ao capelão, aquela figura paga para prestar assessoria religiosa aos militares. O padre ou pastor abençoa os que vão morrer e matar, e seus respectivos brinquedos de guerra. Esses profissionais costumam ser discriminados nas tropas. Não tem como se defender porque não portam armas, apenas a fé inabalável na sua divindade. O poeta profissional militar poderia pelo menos ferir os inimigos com guerra psicológica por meio das cantigas de maldizer. Sem falar que os generais teriam muito a ganhar com poetas soldados. Basta saber que o general Ulisses seria um desconhecido hoje em dia se não fosse a poesia de Homero. Não rolaria a Ilíada nem Odisseia.

Iniciei a leitura do poema longo de W. J. Solha, “1/6 de laranjas mecânicas: bananas de dinamite”. Solha é o tipo de autor do qual o general diria: não se envolvam com esse cara sob hipótese alguma. A poesia dele tem muito mais do que palavras e nunca se sabe quais as suas verdadeiras intenções. Nos quarteis não se estuda cognitivismo. Solha resume:

Poeta

não é

P(r)o(f)eta.

 

Mas em tudo

há uma meta.

Tem poeta que não move um dedo para ser compreendido. Suas intenções pouco cristalinas se escondem nas entrelinhas com as configurações históricas, culturais e econômicas. Por isso todo poema é uma obra inacabada. Quem lê trata de revisar e refazer as ideias. Por extensão, a obra literária é uma coprodução. Poeta, romancista, ator, pintor e uma das pessoas mais cultas que habita a terra de Augusto dos Anjos, W. J. Solha passa anos burilando seus poemas longos e depois seleciona cuidadosamente os primeiros leitores de sua invenção. Dessa lista fazem parte pessoas que tenham possibilidades, mesmo que mínimas, de fazer uma abordagem teórica e apreciar o poema. O Correio é o principal aliado de Solha nesta operação. Eu acho que Solha pretende com isso obter o feedback, estudar a reação dos seus leitores selecionados, já que são quase todos elementos influentes nas tais mídias sociais, esses espaços de comunicação moderna. Eu sou um dos afortunados que estão no cadastro de Solha. Recebi e estou acabando de ler as 84 páginas do “1/6 de laranjas mecânicas: bananas de dinamite”. A princípio, diria que o poema de W. J. Solha é uma espécie de cebola mágica: você vai descascando camada por camada, com ideias encadeadas tipo “As mil e uma noites”.

Cada coisa

simples ou complexa,

a nos levar,

o tempo todo,

a outra,

conexa,

feito a maçã

que

à mitológica Eva leva a… gravidez;

a Newton, a gravidade.

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Fábio Mozart

Fábio Mozart transita por várias artes. No jornalismo, fundou em 1970 o “Jornal Alvorada” em Itabaiana, com o slogan: “Aqui vendem-se espaço, não ideias”. Depois de prisões e processos por contestar o status quo vigente no regime de exceção, ainda fundou os jornais “Folha de Sapé”, “O Monitor Maçônico” e “Tribuna do Vale”, este último que circulou em 12 cidades do Vale do Paraíba. Autor teatral, militante do movimento de rádios livres e comunitária, poeta e cronista. Atualmente assina coluna no jornal “A União” e ancora de programa semanal na Rádio Tabajara da Paraíba.

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