Um presente inusitado: O PAPA e a sobrevivência no INFERNO
Uma notícia causou espécie recentemente: o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, em encontro sobre o clima no Vaticano, presenteou o Papa Francisco I com nada menos do que um disco do grupo de Funk Racionais MC’s. Até aí tudo bem, imagino que o Pontífice não ocupe os momentos de lazer, curtindo um bom funk, afinal de contas ele não tem mais idade para ensaiar uns passos sampleados. Mas ele poderia receber o tal presente em nome da boa educação e depositá-lo num petit coin dos seus aposentos ou escritórios.
O título e a motivação do disco é que são elas. O disco, gravado em 1997, chama-se Sobrevivendo no inferno. E sua motivação, podemos dizer que, se sustenta no tripé humano-social-religioso, porquanto traz na capa o versículo 3, do salmo 23. Não, esse versículo não é de linguagem imprecativa, não. Esse vers. preleva de uma linguagem invocativo-suplicante. Diz apenas, “Refrigere minha alma e guia-me no caminho da justiça”. Mas agora bagunçou tudo! Um grupo de marmanjos que não vivem em igrejas nem em missão e até a elite insinua que são usuários de produtos que não se pode mandar entregar pelos correios! Metem-se em falar de coisas divinas?… Calma gente! Nada tão divino quanto a paz e o bem-estar humano. Afinal de contas, foi Santo Irineu de Lion quem escreveu: A glória de Deus é o homem vivo. E aqui, “vivo” significa não vegetar nem ser morto em qualquer esquina impunemente, mas viver com dignidade.
E esse povo assim rezando?! Sim. Por que não? Disse Santo Agostinho que Quid cantat bis orat. Claro, se esse canto constituir-se em oração. E na Bíblia não há modelo maior de oração do que os salmos. E este verso do salmo 23 é uma oração equilibrada e fortalecedora: ele contém dois verbos no imperativo afirmativo, mas, no caso, não é uma ordem, sim um pedido. O salmista dirige-se a alguém, no caso Deus, pedindo que proteja e fortaleça a alma e o leve por caminhos que o faça chegar a bom termo. E o Evangelho diz que a oração será verdadeira se for validada pela sinceridade do “orante”, e será eficiente, isto é, atendida por Deus, se o “orante” for humilde e insistente. Bem, eu não tenho um “femômetro” para medir a sinceridade e autenticidade da fé dos integrantes do Racionais MC’s.
Contudo, indícios apontam que grupos como Racionais MC’s, O Rappa e outros do gênero estão mais comprometidos com o bem-estar e a paz social do que se possa imaginar: muito mais do que “ongueiros” e a maioria dos religiosos, de políticos eu nem falo. Esses artistas-cantores que nasceram em ambiente inóspito à vida, onde grassa a violência pela indiferença e ação cruel do Estado, onde cujas populações, segundo Manoel Bomfim e a observação de quem o queira, nascem infelizes, vivem sofredoras e morrem miseráveis. Para que melhor descrição do inferno que esta? Aliás, inferno, além de ser o mundo inferior, isto é, debaixo da terra, para os israelitas, significa ausência de Deus, ou seja, do bem, da paz, de tudo que é de fato bom para o ser humano. E este papa, até onde o percebo, tem alma e coração suficiente para compreender isso.
Este Estado negligente, lá só aparece ou para cobrar impostos ou para distribuir projéteis e “porradas”. Então, esses grupos de funk, que obrigados pela situação periclitante e movidos por amor a si mesmo aos seus consortes, lançam-se numa múltipla função, levar a essa gente: alegria com sua arte; conscientização com seu grito de protesto; esperança com a possibilidade de lutar, ser ouvido e consequentemente obter melhorias; bem-estar e paz social com o exemplo de que há outros caminhos a trilhar que não aderir à violência de que são vítimas desde o ventre materno.
Tanto Francisco quanto os componentes do Racionais MC’s e quem seja humano sabem que para a sociedade funcionar a contento todos devem ter o necessário à sobrevivência digna, e ninguém precisa ter demais. Pois aquilo que sobra na conta bancária de alguns, é o que falta na mesa de muitos, diariamente! Se um grupo vai mal, a sociedade não pode estar bem. Analogamente, se há uma unha encravada, é todo o corpo que sofre. Cada indivíduo e a sociedade, como um todo, precisa aprender isso; ao contrário todos pagam o preço social que se está pagando no Brasil.
Todo presente ofertado deve ser escolhido atendendo as possibilidades, no caso as necessidades, de quem oferece, e as condições de possibilidades: de gosto, de nobreza de sentimento, de capacidade e solicitude para acolher e retribuir, daquele que o recebe. Então, este presente com seu valor em si e com toda a simbologia que o envolve, não poderia ser mais oportuno para o grupo de jovens que o escolheu, para o representante da cidade que teve a oportunidade de entregá-lo, para todos os habitantes da cidade, que desejem o bem do ser humano, e para o recebedor que terá mais uma chance de exercitar sua humanidade, coisa que ele tem demonstrado até agora, ajudando, de alguma forma, uma parcela dos filhos de Deus que sofrem e gritam sem ser ouvidos.
Este papa, seguindo a linha de João XXIII e Paulo VI, tem demonstrado que veio para contribuir com a sociedade, não apenas ser midiático e repousar em cadeiras confortáveis e leitos acetinados. Um dos indicadores é sua atitude com a qual lida com as ideias. Ele está mais disposto a ouvir do que a ordenar e normatizar, salvo se for para coibir abusos internos à instituição, diga-se de passagem.
O que é bom para as instituições raramente serve para os indivíduos, assim sendo, se a Igreja quiser continuar existindo e tendo ressonância na sociedade tem de descer do trono e sentar entre o povo que a ouve, para que possa também ouvi-lo e caminharem juntos. Ecclesia populusque Dei numa mesma sintonia. Humano como ele tem se mostrado, saberá dimensionar o que quer dizer “sobrevivendo no inferno”, na realidade latino-americana. E de alguma forma demonstrará isso. Pelo menos este gesto serve para gritar ao mundo que os pobres no Brasil sempre foram abandonados ao mais vil nível de vida.