TOCA DO LEÃO

Sobre gatos e paixões

Louis Wain foi um pintor inglês famoso por suas pinturas de gatos com aspecto de humanos. O artista foi diagnosticado como sendo portador de uma doença psíquica, que poderia ser vista na progressão de seu ofício artístico. Aos poucos, as imagens dos bichanos foram repuxando para configurações intangíveis, talvez elaboradas sob efeito de alucinógenos.

Cada um com sua concepção felina. Aqui em casa, a gata Natalina foi obrigada a obedecer ao comando para rolar no chão feito cachorrinho, se quiser comer. Aprendeu rápido, porque a fome é boa mestra. A gatinha se tornou artista de circo caseiro. O animal também dá a patinha e bate à porta toda manhã, acordando sua domadora.

Não sou supra afeiçoado aos gatos, mas percebo que esses bichos são os animais preferidos da galera chegada à literatura. Meu conterrâneo André Ricardo Aguiar, poeta e contista itabaianense, é um dos que curtem os bichanos. No seu “Livro da existência enquanto gato”, André poetificou assim sua relação com os felinos caseiros: “O gato é um peixe dentro d’água. É a ideia sinuosa que eu tenho ao vê-lo mergulhado em sombra no apartamento, incompatível, como se eu o tivesse resgatado de um antiquário. Um gato turvo cumprindo o turno de fantasma. É um assombro que o dia não se dê conta de que já é noite. E gato”. O escritor americano William Burroughs, neto do cara que inventou a máquina de somar, deu testemunho mais, digamos, insondável a respeito desses viventes carnívoros: “Meu relacionamento com meus gatos salvou-me de uma ignorância mortal, absoluta”. Outro escritor brasileiro, Luiz Ruffato, pertence à confraria dos entusiastas dos miaus. Segundo Ruffato, os escritores se identificam com os gatos porque, como eles, esses felinos são introspectivos e amigos do silêncio.

A gata Natalina me parece, às vezes, realmente concentrada e meditativa. Sei que é uma ideia inverossímil, mas, quem sabe, ela não estaria evocando sua herança genética e memorando os tempos em que os gatos eram adorados no Egito antigo? Os gatos no Egito eram tão especiais que aqueles que os matavam, mesmo por acidente, eram condenados à morte. Matar gato preto, então, era enforcamento certo e mais sete anos de azar. Errata: foi na Idade Média que se criou a superstição dos gatos pretos. Acreditava-se que eram bruxas transformadas em felinos negros, por isso a crendice de viés racista que ainda hoje rola nas sextas-feiras 13 e em outros ambientes preconceituosos. Tenho um gato preto chamado Cirilo. Todo momento em que cruzo com Cirilo e sua indiferença à minha figura, recebo uma lição: viva e deixe viver, não tome satisfação com ninguém. O desdém dos gatos para com os humanos é confundido com menosprezo e insensibilidade. Aquele distanciamento, no fundo, tem a ver com desapego, isenção e neutralidade. Gato jamais será puxa-saco do humano que o alimenta. Pode até ser obrigado a rolar, imitando o cão subserviente, mas é pura estratégia de sobrevivência. Talvez o gato ame, mas sem paixão. Ferreira Gullar não concorda com a conceituação sobre o desamor dos gatos por seus donos. “…ele é apenas mais sutil”.

De qualquer forma, a gata Natalina descende de um antigo gato egípcio, da raça Mau. Esses bichanos foram domesticados pela galera dos faraós, personificados na deusa Bastet, divindade da família, fertilidade e amor. Por isso eram considerados animais reverenciados e sagrados. Daí, talvez, o começo da arrogância e distanciamento dos gatos em relação ao ser humano. Somos servos da deusa Bastet. Cativos desses bichinhos extraordinários e, talvez, imortais. Gatos de fato têm sete vidas, ou mais. Pelo menos para Lígia Fagundes Telles, criadora do gato Rahul, personagem que reflete sobre o proceder das pessoas e as recordações de quando viveu outras existências. Gatos são eternos, como a própria civilização egípcia. Há milhões de anos, um gato selvagem se fez, depois virou gato caseiro, transformou-se em divindade, meteu-se na marginalidade como gato urbano de beco e agora me observa com seu olho verde e independente, a lembrar que a vida deve ter algum sentido, entretanto, nem o mais iluminado dos mortais deveria se incomodar com essas bobagens filosóficas. Neste 2022, faça como o seu gato: não procure despertar sua luz interior nem dê bola para os questionamentos filosóficos. Nem ligue. Apenas evolua naturalmente até virar um gato Manda Chuva, ou o Frajola, Gato Félix, Gato de Botas, quem sabe…

Por Fábio Mozart

Fábio Mozart

Fábio Mozart transita por várias artes. No jornalismo, fundou em 1970 o “Jornal Alvorada” em Itabaiana, com o slogan: “Aqui vendem-se espaço, não ideias”. Depois de prisões e processos por contestar o status quo vigente no regime de exceção, ainda fundou os jornais “Folha de Sapé”, “O Monitor Maçônico” e “Tribuna do Vale”, este último que circulou em 12 cidades do Vale do Paraíba. Autor teatral, militante do movimento de rádios livres e comunitária, poeta e cronista. Atualmente assina coluna no jornal “A União” e ancora de programa semanal na Rádio Tabajara da Paraíba.

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