Das vaias à ovação: médicos cubanos ganham preferência no Brasil
Unidade de Saúde da Família de Cajazeiras XI (Salvador, BA), manhã da última segunda-feira de agosto. Uma escada estreita leva ao pouco iluminado 1º andar, onde está um dos cômodos mais procurados no local: o consultório de número 5. A porta branca da sala, fechada até 2013, é aberta, desde então, muitas vezes ao dia. Observa-se, porém, um intervalo de tempo significativo entre um girar de maçaneta e outro. Neste ínterim de abre-fecha-abre-fecha, com quase nenhuma variação, a cena se repete: após a saída de um paciente, um homem pardo e de meia idade surge, sorridente, de prontuário na mão, para um sonoro anúncio de quem é que será o próximo a entrar. O nome de quem anuncia está em uma placa fixada na frente da porta: “Dr. Rafael – Médico”.
A fila, do lado de fora da sala, é grande. À espera está a vendedora Eurides Silva, de 26 anos, que soube da boa fama do médico e resolveu tentar uma consulta com ele. Queria falar do seu problema na tireoide. Como não havia marcado previamente, esperou todos terminarem para ir pedir um atendimento extra a Rafael. E conseguiu. O médico parecia não se importar com os poucos minutos que faltavam para a hora do almoço. Com o mesmo sorriso, abriu a porta para Eurides e para, pelo menos, mais três outras pessoas que, certamente, não arredariam dali sem conseguir falar com ele. “Normalmente, eu tenho que ‘brecar’ e pedir às pessoas pra voltar depois”, afirma Elzanete Mangueira, gerente da unidade de saúde.
Elza, como é mais conhecida, não diz com um tom autoritário. A intromissão nos atendimentos do médico é cordial e é uma maneira de tentar poupá-lo de uma excessiva carga de trabalho, até porque, na unidade, há mais outros três médicos. “Aqui, temos uma cota para determinados atendimentos. Dr. Rafael, por exemplo, deveria atender por dia 14 pacientes e mais três ou quatro emergências, mas, se deixar, ele atende muito mais. Ele não atende pela agenda, mas pela necessidade do paciente. Ele não quer deixar voltar, mas a gente sabe que isso nem sempre é possível porque é humanamente impossível um médico atender a 20 ou 30 pessoas em um dia. Se deixar, ele atende”, completa a gerente.
O que justifica a fama e a grande procura pelo médico não são os atendimentos extras, mas o que acontece lá dentro da sala, quando a porta se fecha. Com a cadeira do paciente posta ao lado da mesa, Rafael cria um clima favorável à proximidade e à intimidade com quem o procura. Durante a consulta, ouve mais do que fala. Quer saber dos pacientes como é a alimentação, qual o histórico médico da família, qual o modo de vida que leva. Pega na mão, toca o rosto, examina minuciosamente. Na vez de Eurides, pegou um bloco de papel e uma caneta e desenhou a glândula da tireoide para mostrar à vendedora. Ele queria que ela entendesse o funcionamento do sistema endócrino e como o problema na tireoide se desenvolveu. Eurides entendeu direitinho e saiu encantada. “Os outros [médicos] nunca fizeram como ele”, declarou.
Dr. Rafael, de sobrenome Villa, é cubano. Chegou ao Brasil em 2013, junto à primeira turma que partiu de Cuba para a missão de integrar a etapa inicial do programa ‘Mais Médicos’, do Governo Federal brasileiro. A iniciativa surgiu diante do grande déficit de profissionais de medicina no país, com o objetivo de ampliar emergencialmente o atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente nos rincões do Brasil, einvestir na formação de novos profissionais. Naquele período, o Ministério da Saúde (MS) revelou que faltavam 54 mil médicos no Brasil. A média era de 1,8 profissionais para cada grupo de mil habitantes. Para efeitos comparativos, a média da Inglaterra era de 2,7 para mil, segundo o MS.
A recepção não foi boa. Rafael e os conterrâneos chegaram sob vaias e protestos, principalmente vindos de colegas, médicos brasileiros. Um dos episódios mais tensos aconteceu na chegada a Fortaleza (CE), quando um grupo dos profissionais locais chamou os cubanos de ‘escravos’ e ‘traidores’. Em Salvador (BA), onde Rafael desembarcou, a recepção foi calorosa, houve até um grupo de apoio, mas as notícias do que acontecia em outras cidades chegavam aos ouvidos de todos. “Foi algo muito ruim. Somos tão médicos como eles e não viemos aqui para tomar postos de trabalho. Viemos ajudar a todos, em função da precariedade da saúde brasileira, que está muito necessitada”, contou o cubano, ao lembrar da chegada.
A necessidade a que Rafael se refere era real na Unidade de Saúde da Família de Cajazeiras XI, localizada em uma das áreas mais carentes da capital baiana. Cajazeiras XI é um dos setores do bairro de Cajazeiras, que possui dimensões de uma cidade e é, por isso, considerado o maior conjunto habitacional da América Latina (AL). Em 2010, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) contou 60 mil habitantes – 100 mil quando se considera os 40 mil moradores dos setores de Fazenda Grande, que, quase sempre, são incluídos no conjunto de Cajazeiras. Pela grande população e pela distância do Centro de Salvador, a impressão que se tem é que a localidade possui uma vida independente em relação ao município. Era esquecida, dizem os moradores, ao lembrar que, até 2013, não existia médico nas unidades de saúde.
A cerca de 70km dali, uma outra comunidade tem uma história parecida para contar. São Sebastião do Passé é um município da Região Metropolitana de Salvador (RMS). Lá, vivem 45 mil pessoas, segundo a última contagem do IBGE. Antes do ‘Mais Médicos’, a Unidade de Saúde da Família Péricles Rodrigues, na sede, funcionava sem atendimento médico. A mudança só aconteceu com a chegada de quatro médicos cubanos, enviados ao município para suprir a carência. São três homens e uma mulher. A única mulher do grupo é Yadira Giraudy, uma negra de cabelos ondulados e sorriso fácil, escalada para o trabalho da sede. Na comunidade, que é menor do que o bairro de Cajazeiras, a médica se tornou, ao longo desses dois anos, uma rainha.
Quem faz acreditar no título de majestade são os pacientes, que se derretem ao falar da médica cubana. Uma delas é Dona Maria Ionice Cerqueira, aposentada de 61 anos. Fez questão de falar à reportagem sobre a ‘doutora’, para quem não economiza nos elogios, mesmo recebendo ‘broncas’ dela, de vez em quando. É que Dona Maria Ionice às vezes descuida dos muitos problemas que possui: doença de chagas, osteoporose, colesterol alto, diabetes e quase-cegueira. “Sou acompanhada por ela e toda terça-feira eu estou aqui. Ela é muito boa, se preocupa muito com os pacientes. Além de examinar, ela escuta. Por causa do meu problema nas vistas, ela não deixa eu vir sozinha e nem quer que eu fique na rua sozinha. Só a preocupação dela…”, conta a aposentada, que teve a última frase interrompida pela própria emoção. Os depoimentos positivos sobre a médica se repetem na fila da unidade de saúde.
Mas o início não foi fácil para Yadira e Rafael. Além da tentativa de parte dos médicos brasileiros de criar uma imagem negativa dos profissionais estrangeiros junto à sociedade, os cubanos esbarraram, também, no português, pois a língua oficial de Cuba é o espanhol. “Quando cheguei, ninguém entendia nada. Tinha que falar muito devagar e muitos queixavam de que não entendiam a médica, mas, pouco a pouco, fui ganhando a confiança deles e melhorou muito. Hoje, me sinto muito bem com eles”, conta, aliviada, Yadira. No caso de Rafael, muitas vezes ele chegou a chamar os enfermeiros para que pudessem auxiliar na comunicação. Como português e espanhol são línguas parecidas, os dois médicos logo conseguiram desenvolver o ‘portunhol’ e os percalços com os diálogos diminuíram radicalmente.
Superadas as dificuldades iniciais, Yadira tratou de apresentar à população e à equipe da unidade de saúde algumas das características da medicina cubana que poria em prática: prevenção, humanismo e acompanhamento do paciente. De todas, a última surpreendeu mais. Duas das primeiras perguntas que a enfermeira brasileira Maria Juliete de Oliveira ouviu da médica foram: “Como são as visitas? Vamos fazer para todos os pacientes?” De queixo caído, a enfermeira tentou explicar que existiriam dificuldades pela grande quantidade de pacientes. Mas com a facilidadede estar e morar em uma comunidade menor – Rafael mora em um bairro diferente do que trabalha -, a médica insistiu e passou a fazer visitas às casas para conhecer e orientar os hábitos dos moradores, principalmente em relação à alimentação. Não dá para fazer visitar toda a comunidade, mas ela vai a todos aos grupos considerados prioritários pela equipe.
Preferência nacional
As histórias de Rafael e Yadira, marcadas pela transformação das vaias iniciais em ovações, na Bahia, não são as únicas. Pelo menos é o que revelou uma recente pesquisa desenvolvida pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sobre a relação dos brasileiros com os profissionais do ‘Mais Médicos’, em que os cubanos são a grande maioria (são 11.429 dos 14.462 médicos participantes do programa). Feito em 700 municípios, entre novembro e dezembro do ano passado, o levantamento ouviu 14 mil pessoas, que deram, na média, a nota 9 ao atendimento oferecido pelos cubanos nas unidades públicas de saúde (55% dos entrevistados deram a nota 10). Outros 87% elogiaram a atenção e a qualidade do atendimento; 77% garantiram que tiveram uma boa comunicação com os profissionais estrangeiros.
Na Bahia, são cerca de 1.363 médicos em atuação pelo programa federal. Um relatório inédito da Secretaria Estadual de Saúde, a Sesab, apontou uma relação entre o aumento do número de médicos no estado, através do ‘Mais Médicos’, e uma melhora significativa dos índices de qualidade de vida dos baianos. Segundo o documento, de 2013 para 2014, houve uma redução da taxa de mortalidade infantil (de 16,35% para 15,39), de internações motivadas por condições relativas à atenção básica (de 42,02% para 40,90%), por Acidente Vascular Cerebral, o AVC, em pacientes de 30 a 59 anos (de 6,93% para 5,29%) e por diabetes e suas complicações (de 7,0% para 6,0%). Houve, ainda, um amento do número de bebês nascidos vivos de mães que fizeram sete ou mais consultas de pré-natal, durante a gravidez (de 46,97% para 50,83%).
Os profissionais do ‘Mais Médicos’ estão, segundo o MS, em 4058 dos 5570 municípios brasileiros, o que representa uma cobertura de 73% do território nacional. Entre os locais de atuação, estão 34 distritos indígenas. A estimativa é de que, hoje, 134 milhões de pessoas estejam sendo atendidas por médicos do programa. A presença de médicos fixos nas comunidades é estratégica, segundo o Ministério, porque, como a atenção básica é a porta de entrada dos que procuram atendimento médico, 80% dos casos que chegam às unidades são resolvidos no próprio local, sem que seja preciso o deslocamento e sem que haja a superlotação de unidades de atendimentos mais complexos.
“Antes [do ‘Mais Médicos’], não tínhamos a possibilidade de garantir a cerca de 63 milhões de brasileiros o acesso à atenção primária na saúde. Com o Mais Médicos, que conta com a cooperação da OPAs [Organização Pan-Americana da Saúde], nós temos efetivamente garantido a cada brasileiro o direito de uma atenção primária qualificada. Por meio do Programa, conseguimos levar profissionais onde vivem as pessoas com maior vulnerabilidade, nas periferias das grandes cidades brasileiras, nos quilombolas, assentamentos rurais, aldeias indígenas, na floresta amazônica, onde os brasileiros precisam de médicos”, disse o ministro Arthur Chioro, através da página do Ministério da Saúde na internet.
As principais vozes contrárias ao programa ‘Mais Médicos’ são das entidades que representam a classe médica. Desde 2013, elas têm defendido que a iniciativa não iria resolver o profundo problema da saúde no Brasil. Na Bahia, o presidente do Sindicato dos Médicos (Sindmed), Francisco Magalhães, foi procurado para comentar a pesquisa divulgada pela UFMG. Magalhães disse que estava sendo informado da pesquisa pela reportagem, mas que, mesmo sem um conhecimento prévio, refutava a metodologia e os resultados obtidos pelo levantamento da Universidade mineira.
“Nós estamos vivendo, no país, um quadro em que se verifica que as condições de trabalho dos profissionais de saúde estão piores. Estamos com problemas diversos”, defendeu o presidente do Sindmed-BA. Durante as visitas às unidades de saúde, a reclamação identificada pela reportagem em relação às condições dos locais foi sobre o irregular recebimento de medicamentos. Yadira, por exemplo, contou que em São Sebastião do Passé chega a faltar remédios para doenças crônicas [como hipertensão e diabetes], em alguns períodos. A médica alerta para os riscos que a irregularidade causa porque o uso dos medicamentos não pode ser interrompido e grande parte dos pacientes, segundo ela, não pode comprar.
Em nota, a Secretaria Estadual de Saúde informou que “a maior parte dos medicamentos destinados ao tratamento de hipertensão de diabetes é de responsabilidade do próprio município. A Secretaria Municipal de Saúde é quem faz a aquisição”. A Secretaria de Saúde de São Sebastião do Passé foi contatada, mas, até o fechamento da reportagem, não apresentou um posicionamento. Sobre as críticas do presidente do Sindmed, a Sesab não se posicionou.
Missões cubanas
Os cubanos chamam as emissões de médicos para outros países de missões. A cônsul de Cuba no Nordeste do Brasil, Laura Pujol, explica que a iniciativa é antiga e consegue traduzir o espírito da ilha localizada na América Central. “Não é uma questão recente, mas algo que se estende na História. Desde os anos de 1960 nós enviamos para onde precisa da nossa ajuda solidária. Isso tem a ver com princípios e com a formação que nós temos, de entender que a solidariedade é uma pedra fundamental de nossa cultura. Para nós, não é dar o que sobra, mas compartilhar o que se tem”, afirmou a cônsul. Mais de 128 países já receberam médicos de Cuba e, atualmente, há mais de 68 mil médicos prestando serviços pelo mundo. Além do Brasil, outros países que receberam grandes missões cubanas foram Afeganistão, Venezuela e diversos países do continente africano, segundo o consulado. Antes de virem para o Brasil, Rafael e Yadira participaram de outras missões. Os dois estiveram na Venezuela e em Honduras.
O Consulado Regional de Cuba está instalado em Salvador e realiza um trabalho de acompanhamento das condições de vida e trabalho dos médicos em toda a região Nordeste do Brasil. De acordo com Laura, são feitas de 15 a 20 visitas por mês aos municípios pelos próprios cônsules – além dela, há mais dois. Como a demanda é grande e a equipe não consegue estar em todas as localidades, o consulado resolveu promover, além das visitas, encontros dos médicos que atuam nas mesmas regiões. Nas ocasiões, que são celebrações com elementos da cultura cubana, os cônsules aproveitam para fazer os levantamentos sobre a vida nos municípios. “Queremos que eles sintam que o nosso governo está preocupado e está ali para qualquer situação que eles precisarem”, explicou Laura.
Para viabilizar o ‘Mais Médicos’, o Governo federal conta com parcerias dos estados e municípios. Ao município, cabe garantir a permanência dos médicos instalados nas comunidades, oferecendo, por exemplo, moradia, alimentação e transporte. Durante as entrevistas, Rafael e Yadira não reclamaram das condições oferecidas pelas prefeituras, mas foi possível observar que elas poderiam ser melhores. Maria Juliete, a enfermeira da unidade São Sebastião do Passé, contou que Yadira já reclamou de ter que dividir uma pequena casa com os outros três médicos conterrâneos. A casa alugada para Rafael pela Prefeitura de Salvador fica em Itapuã, um bairro distante de onde ele trabalha. Ele mora com a esposa, Gaya, também médica de Cuba, que trabalha na mesma unidade – e, assim como ele, é bastante concorrida. O casal vai e volta de ônibus, enfrentando engarrafamentos no trajeto, que chega a ser feito em até 1 hora. Se morassem na própria Cajazeiras XI, a qualidade de vida, certamente, seria outra.
A permanência dos médicos estrangeiros no programa é, em média, de três anos. Como já estão no Brasil desde o início, há mais de dois anos, a partida já está se aproximando. Rafael e Yadira, embora se sintam bem acolhidos, não veem a hora de matar a saudade da família que ficou em Cuba – ambos possuem filhos. A equipe de saúde das unidades em que eles trabalham preveem que a falta será grande, proporcional ao legado que os cubanos deixarão. As equipes garantem que vão seguir com os ensinamentos recebidos, principalmente os relacionados à prevenção. Difícil será, certamente, a partida dos médicos para as comunidades. Quando questionados sobre isso, os pacientes preferem nem pensar. Foram cativados e esse pode ter sido o grande erro dos cubanos durante a missão. Como ensina a história do ‘Pequeno Príncipe’, mundialmente conhecida: “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.
Revista Forum