TOCA DO LEÃO

Sobre reminiscências e despedidas

Trabalhar na bagunça faz você raciocinar melhor. Essa constatação saiu na revista Super Interessante. Na verdade, trabalho em uma bagunça total. Se essa confusão for arrumada, perco o rumo. De vez em quando sou enxotado pela dona da casa, para arrumação do escritório. A limpeza alegra o coração das mulheres, mas carrega consigo a tristeza do desordenamento de nossas coisas que só nós sabemos onde estão, espalhadas em pastas de papel, gavetas, armários e baús insuspeitos. A arrumação invasora de nossos domínios descentraliza nossas fontes, espalha as referências, desmembra coisas tão díspares no mundo real, mas que formam uma série lógica no nosso universo pessoal.

Nesta noite insone, ando mexendo nas velhas pastas e caixas de documentos antigos. No ângulo do quarto que me serve de escritório, o belo e antigo rádio a válvula “Trans Montreal” ao lado de pequenas caixas misteriosas onde guardei um dia fotos, documentos, receitas, cartas, recibos, recortes de jornais. Acho que a gente guarda essas coisas com o mesmo sentimento: a tentativa de segurar o tempo e construir com esses anacrônicos papéis a trajetória de uma vida, perpetuar-se pelo menos nos nossos inesgotáveis arquivos. Todo mundo quer ser imortal. Quem pode e tem cacife, faz como Sarney, constrói seus memoriais no afã de ser lembrado até a consumação dos séculos. Eu guardo meus papéis com medo que a fugacidade da vida e o sentido de higiene da dona da casa volatilizem esses documentos tão desimportantes, mas essenciais no meu estilo de vida tão desorganizado no meio dessa matalotagem de velharias.

Meus sucessivos “eus” estão todos aqui, nos meus arquivos. É só abrir uma pasta coberta de pó, de onde saem bichinhos sociais e devoradores de papel. Em meio às traças e cupins, estão lá as fotos de minhas peças teatrais, meus times de futebol, crachás do meu tempo de operário, certidão de óbito do meu tio Luiz Mello, carteira de trabalho, contratos, convite para a formatura da dona da casa em 1978 no Colégio Nossa Senhora da Conceição, justificação eleitoral nas inúmeras eleições às quais faltei, ato de punição disciplinar por contestar os chefetes na estrada de ferro, certidões de nascimento de alguns rapazes da dinastia Mozart, contas atrasadas e jamais quitadas e correspondências diversificadas. Um documento chama a atenção pela coincidência: no dia 10 de outubro de 1987, a Rede Ferroviária Federal me removia da estação de Itabaiana para Mari. Portanto, hoje completam 33 anos que fui exilado em Mari, assumindo sua estação ferroviária onde me aposentei.

BETO PALHANO

O radialista Beto Palhano faleceu no dia 4 de outubro em João Pessoa, vítima de acidente com sua bicicleta na BR 230. Conheço Beto desde meus doze anos, somos da mesma idade. Fui vizinho dele em Itabaiana. Estudamos juntos. Depois, com uns quinze anos, começamos a frequentar casa suspeita e tomar “mé de tubiba”. Também principiamos a ler, estudar marxismo. Um professor nosso era trotskista, viramos crentes dessa seita política. Depois passamos a fazer teatro, fundamos um grupo amador, editamos um jornal falando mal da ditadura. Fui até preso. Palhano não foi enjaulado porque fugiu pra casa de um parente pros lados de Nova Cruz, e isso até os vinte e cinco anos quando nos separamos. Ele foi morar no Recife, eu fiquei em Itabaiana, depois saí também. Quando cheguei em João Pessoa em 2000, ele estava aqui, habitando o conjunto ditador Ernesto Geisel. Nossa sina era essa: mexer com o status quo. Fundamos uma associação cultural e uma emissora comunitária, a rádio Zumbi. Depois circulou o nosso jornal Olhos Abertos, com o companheiro Gilberto Bastos Júnior. Conheci Dalmo Oliveira e prosseguimos na brincadeirinha de fazer cultura, mexer com comunicação alternativa.

Palhano sempre com aquele jeito dele de ser, um cara positivo. É como diz meu compadre Ivaldo Gomes: “Era um militante do bem, um sujeito humilde, simples, que lutava pelo que acreditava, sempre na perspectiva do humanismo”. Pra mim foi uma alegria viver ao mesmo tempo em que viveu Beto Palhano. Ivaldo disse que vai sentir falta das tiradas, da sua verve, da ironia criativa do velho Cigano. “Vá na paz, espere por nós pra gente botar no ar uma rádio aí no céu e falar mal de São Pedro”, concluiu Ivaldo Gomes

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Fábio Mozart

Fábio Mozart transita por várias artes. No jornalismo, fundou em 1970 o “Jornal Alvorada” em Itabaiana, com o slogan: “Aqui vendem-se espaço, não ideias”. Depois de prisões e processos por contestar o status quo vigente no regime de exceção, ainda fundou os jornais “Folha de Sapé”, “O Monitor Maçônico” e “Tribuna do Vale”, este último que circulou em 12 cidades do Vale do Paraíba. Autor teatral, militante do movimento de rádios livres e comunitária, poeta e cronista. Atualmente assina coluna no jornal “A União” e ancora de programa semanal na Rádio Tabajara da Paraíba.

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