Preconceito à moda antiga
Após cinquenta anos de coito, o ancião descobre que não é mais irresistível, passa a ser até risível, com suas limitações de quem perdeu a jovialidade e o vigor das células. Em toda literatura e nas experiências da cultura ocidental, essa coisa chamada excitação só se realiza até os quarenta anos no seu auge, para ir aos poucos perdendo interesse. O idoso carrega, além do peso dos anos, a crença embutida de que volúpia e assanhamento fora do tempo devem ser até refreados e sufocados.
O ancião e a anciã formam um par amoroso, desses que andam separados na rua para não causar constrangimentos, porque um casal com cabelos brancos aos abraços em público é razão até de aviltamento. O fenômeno envelhecer, natural a toda espécie, entre os homens ocidentais, está longe de ser tratado com respeito e atenção. A idosa sabe que sua vizinha conhece a etiqueta: não se deve perguntar a idade de uma mulher envelhecida. Como se a passagem do tempo fosse algo repreensível e deplorável. O idoso sempre tem algo a esconder. Pode ser o problema na próstata que o faz levantar quatro ou cinco vezes durante a noite para urinar, ou a debilidade senil para certos atos. Seria motivo de chacota. “Lá vem um homem e um velho”, anuncia alguém.
E o velho, com sua vivência e grande tarimba em relação às ignomínias da civilização quando se fala em preconceito contra idosos, sabe que sempre há risco no seu caminhar por essa sociedade. E com a pandemia do coronavírus, a discriminação se evidencia. A Comissão dos Direitos da Pessoa Idosa da Câmara alertou sobre o que todos sabem, especialmente quem é velho, sobre o chamado “ageísmo” ou “idadismo”. Estudantes de Medicina não gostam de atender velhos. Cria-se os estereótipos de fragilidade e improdutividade. Na nossa cultura, a pessoa que envelheceu é um incômodo. A discriminação é institucional e estrutural.
Na China e no Japão, a velhice é sinônimo de sabedoria e respeito. Aqui, sem essa educação milenar de dignidade e reverência, o velho tem vergonha de si mesmo. Por isso desvia o olhar da companheira, ficam sem poder falar sobre aquele lampejo de libido que não se concretizou. Ela pensa: findou o encanto? Ele avalia que nunca mais será o mesmo e calcula que chegou a hora da verdade inexorável: sua vida acabou, com tudo o que nela havia de graça e gosto. Sentimento até de desonra e rebaixamento. Aquele amor à primeiríssima vista de uma mocinha na janela, aquele ardor de tantos anos, os olhares mendicantes, os encontros fortuitos, os primeiros pegas, ela valente e decidida, dedicou a vida toda ao namorado. Viveram o amor em toda sua totalidade, com as decepções de praxe, os arroubos, as loucuras fora da ampla jurisdição do que é certo ou errado, conforme dita a cartilha da hipocrisia social. Envelheceram juntos, empenhados em se esquivar como podiam da rejeição social ao acordo de convivência que estabeleceram para ambos.
Cinquenta anos de afeição e cumplicidade entre aquelas duas criaturas introvertidas, agora mais embaraçadas diante da vida que vai se desfazendo, forçando a que o casal de idosos reveja o real sentido de suas existências. Mal chegados à idade provecta, e para visível insatisfação do senhor maduro, terão que reavaliar seus papéis sociais e comportamentos considerados como indevidos para os adultos velhos.
Enfim, tudo passa e tudo se reestrutura. Apesar das insuficiências naturais da idade, os velhinhos se confortam na evidência de que ainda se estimam e que guardam na profundidade de suas reminiscências mais queridas aquele patamar de desenvolvimento humano que os transformou em dois seres equivalentes. Por isso a prudência dela, a paciência e tolerância diante do velho pouco sábio. E aquelas conversas sobre coisas do passado, prosa antiga de arcaicos namorados, ainda capazes de reproduzir sentimentos e prazeres por estarem juntos.
Por Fábio Mozart
Toca do Leão