O velho, a vaca e o vazio
“O segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão”. (Gabriel Garcia Márquez)
O ser humano é a única criatura que leva fé em elementos, reais ou não, que não se encontram na natureza, como governo, papel-moeda e bandeira. O homo sapiens também pariu a solidão e o desterro. Alguns humanos pertencentes à espécie “Seu Lunga” são impacientes à medida que envelhecem e preferem se isolar, comportamento parecido com os rinocerontes, adeptos do estilo de vida insociável e pouco tolerantes com outros animais.
O idoso cansado só quer ficar na dele. Moro perto de um velhinho e sua vaca. Toda manhã, o ancião trazia sua vaquinha para pastar no meu quintal. Um homem simples, aparentemente sem amarguras, acabando seus dias na rotina de levar e buscar seu animal. Respondia ao meu cumprimento sem alterar a voz, regular e padronizado. De alguma forma, notei que o cidadão não confiava em mim, sujeito vindo de longe, estranho ao seu mundo. As pessoas que vivem no campo veem o dia, a noite, o sol, as estrelas, a chuva e os pintassilgos como propriedade sua, intransferível. Isso foi o que pensei em relação ao velho, porque um pedaço significante do seu universo, de alguma forma, estava sendo ocupado por um estrangeiro. Entrava no quintal sem nenhuma cerimônia, com cara de desafeto. Nada de papo com estranhos. A vaca pastava sua sabedoria junto com seu pastor e a mesma fobia social. Até o dia em que o dono do terreno botou o trator no mato, limpou e cercou o campo. A vaca, agora sem terra, e seu dono ficaram sem o pedaço mais significante de suas vidinhas ordinárias. Foi como perder sua autonomia existencial. Duas espécies diferentes trilhando caminhos tão comuns.
O fato banal da ocupação da área fez com que o velho saísse do seu mundo particular e viesse compartilhar comigo seu descontentamento. Filho do campo, brigou com latifundiários, foi expulso da fazenda onde nasceu, perdeu o sítio, os bodes e a cacimba. Estabeleceu-se na “rua” com o que restou de seu: a vaca pé duro curraleira e a dignidade campesina. Vendo o senhor subindo a estradinha, puxando sua vaca, alguma coisa me doeu. A vida e o mundo vão continuar sem saber do sofrimento do velho agricultor, escondido naquela aba de serra. Fiquei mais sozinho, embiocado que também estou nessas paragens há mais de um ano, sem saber se vou voltar à vidinha regular na cidade. O coronavírus me isolou e me enfiou nesse jogo delicado de reformular a vida. Só sei que agora conheço melancolicamente a angústia do homem só. Aqui, no conforto de uma boa casa, internet, comida, clima bom, livros para ler e rádio para ouvir, começo a sentir falta do aconchego da companhia humana. O homem da vaca teve que vender seu animal, deixou de ser um bicho gregário também.
Por causa de um desvio perverso da natureza, a pandemia, fui parar em um cocuruto de serra, isolado do contato com os conhecidos. Neste ermo, entendo que fiquei velho e terei que forçosamente assinar “um honroso pacto com a solidão”. No processo, vou captando e interpretando o insulamento alheio. Passando pela casinha do velho, sempre levo um papo. Compreendo um pouco a espantosa solidão em que subsiste aquele homem. Na sua ilha deserta, o idoso vivia em função da vaquinha preta. Agora, nem isso.
E eu? Sigo tomando minhas doses diárias de melancolia rotineira. Acordar cedo, exercício na bicicleta, depois espichar o tédio desses dias sem sentido, tomar cuidado nos níveis de colesterol, proibido frituras, glúten, ovos, farinha branca, leite, açúcar, óleo de soja. Vou fritando em tachos de óleo usado e reusado o que me resta de dias na face da terra, sem nem uma vaquinha que me empreste encorajamento e sentido. Estímulo é uma emoção em falta. Quanto mais desconsolo na praça, menos demanda de regozijo e entusiasmo. A vida não está sujeita às leis do merc