TOCA DO LEÃO

O estranho caso da barata transfigurada em ser humano

Como parte do meu estágio de estudos sobre esse inseto caseiro noturno e asqueroso, li o livro “A barata”, do autor inglês Ian McEwan. Quando as baratas dominarem o mundo, tomara que leiam a obra de Ian e meu relatório que começa assim: “Naquela manhã, ao acordar de um pesadelo onde hordas de milicianos dominavam o país, o evangélico pentecostal Costinha viu-se transformado no ministro da saúde precária e disfuncional do país, segundo homem de confiança do Grande Mito, depois do Generalíssimo Marechalíssimo Heleno de Troia, aquele que introduziu um cavalo nas fortificações da cidadela desvigorada da soberania popular”.

Costinha sofreu uma mutação incrível. Antes, tratava-se de um simplório zé ruela semianalfabeto e militante do movimento religioso inimigo da cultura e da ciência. Graças à contrarrevolução política, religiosa, econômica e científica, foi alçado à categoria dos grandes mestres da nova ordem. Anteriormente não passava de um elemento repugnante, escondendo-se nos buracos e fossas do fascismo, segregacionismo e da tirania mascarada com palavras de ordem tiradas a fórceps da Bíblia. Após a metamorfose, tornou-se um inseto poderoso e maligno como a barata fazendeira de “MIB – Homens de preto”. Costinha acaba sendo autor da lei que institui o voto telepático, extrassensorial. O crente ora a Deus, recebe orientação e encaminha seu voto metafísico para o Diretor Geral Eleitoral da Nova Ordem, o pastor Malafalsa. Tudo na mais absoluta segurança e paz de necrópole.

Mundo de Franz Kafka virado ao contrário, a ocorrência validou a crônica de Luiz Fernando Veríssimo: “Uma barata acordou um dia e viu que tinha se transformado num ser humano. Pensar, para a ex-barata, era uma novidade. Antigamente ela seguia seu instinto. Agora precisava raciocinar”. As almas das baratas transformadas em seres humanos são, geralmente, bobas e insensatas, descobrindo-se miraculosamente capazes de explicar o sentido da vida e de como estancar o progresso da humanidade. O deus da nova ordem manda olhar somente para seu próprio umbigo e se preocupar apenas com o individualismo, o narcisismo e a inquietação consigo mesmo. Tudo o mais é comunismo. Enxotados pela nova ordem das baratas alucinadas de verde e amarelo, os cientistas, professores e artistas foram se refugiar no que restou da floresta esturricada, onde a cultura, a ética, as flores e frutos começam por milagre a rebrotar.

Feliz porque enterrou a aurora e abateu a soberania popular, Costinha dá de garra de sua Bíblia e do seu fuzil AR 15 refrigerado a ar e alimentado com o gás que falta na cozinha, disposto a disparar 30 tiros entre uma oração e outra, enquanto sua mente semiautomática repete mantras sobre Estado mínimo, combate à corrupção e liberdade individual. Em estado contemplativo, repete o plano para que Estado intervenha no Estado, assim o Estado dá o golpe militar no Estado, desconstruindo o Estado e fortalecendo o Estado para introduzir o voto auditável, que é uma espécie de salvação do Estado em estado puro de Velho Testamento, segundo prescrições da Nova Ordem Cavernista Baratazeira, uma seita cujo líder supremo tem o tecido cerebral e sistema nervoso semelhante ao da barata.

Deitado eternamente em berço bolorento, o povaréu apenas assiste à caravana das baratas irrompendo pelas ruas perversas e arruinadas, em cujas frestas de batentes das portas deterioradas se esconde meia dúzia de humanos que ainda não se converteram ao mundo dos insetos e insistem em não aceitar a resolução oficial de que o estado de barata não degenera o homem: o homem é que deteriora e perverte o inseto. E a verdade é o que sai da boca da barata líder. Todo aquele que não acolher tais crenças é pecador. No caso, comunista.

Fábio Mozart

Fábio Mozart transita por várias artes. No jornalismo, fundou em 1970 o “Jornal Alvorada” em Itabaiana, com o slogan: “Aqui vendem-se espaço, não ideias”. Depois de prisões e processos por contestar o status quo vigente no regime de exceção, ainda fundou os jornais “Folha de Sapé”, “O Monitor Maçônico” e “Tribuna do Vale”, este último que circulou em 12 cidades do Vale do Paraíba. Autor teatral, militante do movimento de rádios livres e comunitária, poeta e cronista. Atualmente assina coluna no jornal “A União” e ancora de programa semanal na Rádio Tabajara da Paraíba.

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