MÍDIA E SOCIEDADE

Mídia, luto e escatologia.

Mídia & Sociedade

Arte: Sérgio Ricardo/DiárioPB

Há três fatos sociais que transformados em acontecimentos midiáticos revelaram as rupturas entre a História e o acontecimento factual no mundo contemporâneo.

Estes três acontecimentos envolvem o modo como a retórica midiática opera em nosso imaginário urbano social: selecionando o que deve ser dito e mostrado, transformando acontecimentos históricos em eventos.

O primeiro fato aconteceu em João Pessoa -Paraíba – quando um casal classe-média (saindo de uma festa de réveillon) atropelou e matou em via pública um pedreiro que – no primeiro dia do ano 2020 – se dirigia ao trabalho.

O segundo fato diz respeito à perda da noção de luto público na sociedade ocidental, ou seja, nossos corpos perderam a dimensão pública – o valor de ser velado com direito ao solo pátrio.

No terceiro, podemos recordar a maneira como a mídia ocidental tratou a renúncia do Papa Bento XVI, que renunciou ao trono de Pedro.

Quais seriam os elos entre estes três acontecimentos que foram transformados – com força retórica – em eventos midiáticos?

Para responder à questão posta, vamos recorrer a dois filósofos contemporâneos, Judith Butler – militante feministas, uma das autoridades em pesquisas sobre gênero e sexualidade, em seu livro, Vida precária: os poderes do luto e da violência; e Giorgio Agamben, filósofo italiano, discípulo de Walter Benjamin, Hannah Arendt, um dos mais importantes filósofos europeus contemporâneos, através do seus livro O mistério do mal: Bento XVI e o fim dos tempos – sobretudo no ensaio que trata d’o mistério da Igreja.

Começando, como dizem os sábios, pelo começo podemos tentar compreender o que significa a morte de um trabalhador ou de um cidadão simples na escala midiática. Significa apenas mais um registro de violência de acordo com o modelo anunciativo do jornalismo informativo – mesmo que a TV mostre imagens – e todo o drama familiar.

O debate sobre a morte do pedreiro foi polarizado – como na Idade Média – entre quem tem o direito de viver e quem deve morrer sob os auspícios dos senhores de posse.

As vítimas da violência cometida em espaços públicos, contraditoriamente, são automaticamente riscadas de uma perspectiva humana pelas mídias, tratadas de forma dramática e não trágica.

Uma das primeiras reflexões que Judith Butler faz em seu livro sobre as vidas precárias é: “…quem conta como humano? Quais vidas contam como vidas?”.

Veiculada pelos jornais, emissoras de rádio e TVs – a vida do pedreiro morto é drama e não tragédia – no sentido grego, porque o drama apenas expõe os fatos – com intensa carga retórica –  a tragédia procura restaurar os sentidos éticos de uma sociedade.

A morte do pedreiro deveria servir como tragédia (narrativa) para que as leis de trânsito e a convivência social em um país civilizado estivessem em harmonia. Mas o que se observa é a continuidade das forças desproporcionais de poder entre os que estão vivos e os que vivem ‘quase’ mortos na sociedade de consumo.

O segundo percurso deste pequeno ensaio diz respeito ao luto e parte, mais uma vez, de uma reflexão de Judith Butler: “O que concede a uma vida ser passível de luto?”.

Particularmente, esta é uma questão que nos remete á tragédia grega de Sófocles, Antígona, um dos mais belos textos sobre a relação que temos com os mortos no espaço público.

Antígona, filha de Édipo, tenta enterrar o irmão -Polinice – mas é proibida pelo rei Creonte. A partir deste fato, a tragédia demonstra a relação entre o luto e o espaço público, o reconhecimento entre os corpos que são e os que não são reconhecidos pelo Estado.

O que nos demonstra Butler, em seu livro, é que as minorias sociais são ‘percebidas’ pela vulnerabilidade de seus corpos, sujeitos a todo tipo de violência, vivendo publicamente expostos aos diversos tipos de mortes, mas sem direito ao luto.

A perda de um familiar para as classes  economicamente mais pobres se torna melancolia e não luto, ou seja, uma vagarosa peregrinação  em busca do que foi perdido.

Como diz Judith Butler, algo se esconde na perda. Mas não se esclarece, realmente, o que perdemos, pois o discurso midiático trata essas mortes como eventos temporais, negando que este luto seja público e tenha um senso de comunidade.

Ninguém se responsabiliza eticamente pelo luto (como queria Antígona na tragédia de Sófocles), por isso os pobres não morrem, porque já estão mortos.

O terceiro e último liame desses fatos diz respeito à escatologia – as prefigurações imaginárias do fim do mundo.

Se numa frase que, teologicamente, ainda soa confusa, Nietzsche anunciou que Deus estava morto, podemos dizer que para nossa eterna agonia: não haverá Apocalipse. Isto ficou demonstrado com a renúncia do Papa Bento XVI em 28 de abril de 2009.

Bento XVI depositou o pálio no túmulo de Celestino V, que também renunciou ao papado em 1294, como nos informa Giorgio Agamben em seu livro citado. Mas o que a renúncia de Bento XVI tem a ver com mídia, luto, escatologia?

A tentativa de resposta, mesmo auxiliado pelo filósofo italiano, é arriscada. Mas podemos tentar: Bento XVI renunciou porque não viu mais na igreja uma relação direta entre legitimidade e legalidade.

A forma de conduzir a política no ocidente caiu no abismo entre a legalidade e legitimidade. Por isso, Agamben afirma que a ilegalidade e difundida porque os poderes perderam consciência da legitimidade. E mais grave:

“(…) legitimidade não pode ser resolvida somente no plano do direito. A hipertrofia do direito, que tem a pretensão de legiferar sobre tudo, revela, isto sim, através de um excesso de legalidade formal, a perda de toda legitimidade substancial”.

Com esta assertiva de Agamben, podemos refletir que sem legitimidade mais insistindo na ‘legalidade’  algumas instituições acabam valorizando a violência, o não reconhecimento humano, a perda do luto e , no caso da Igreja,  o adiamento da Parusia -a vinda de Cristo, o que desvaloriza todo os sistema escatológico como conhecemos até hoje.

Portanto, estamos condenados a viver neste vale midiático de violências sem lágrimas humanas.

Veja também

Sérgio Ricardo entrevista o ator Joallisson Cunha, da série “Cangaço Novo” no Alô Comunidade

 

Redação DiárioPB

Portal de notícias da Paraíba, Brasil e o mundo

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo