‘Me dá pena, pena pelo Brasil’, diz Mujica sobre manobra para salvar Temer na Câmara
“Tudo isso é muito triste. É um cenário que coloca o Brasil, na visão internacional, como uma república muito desprestigiada. O Brasil não merece isso”, afirma em entrevista à BBC Brasil. É, diz, algo que lhe faz sentir “pena”.
“Me dá pena. Pena pelo Brasil por ver o que aconteceu com uma comissão que estava estudando as eventuais acusações, em que tiveram que mudar a composição dessa comissão. E tudo indica que houve muita influência para poder colocar gente que não decepcionasse o governo.”
Na conversa por telefone, o ex-líder uruguaio afirma que não acredita em nenhuma das acusações contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, critica o sistema de delações premiadas, fala sobre a polarização política no Brasil e disse que as reformas do governo Temer representam “mais de 50 anos de atraso”. Além disso, aponta o que vê como um avanço do “falso moralismo” no país.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil – Qual é a sua opinião sobre o Brasil hoje? O ex-presidente Lula, que o senhor costuma elogiar, foi condenado, em primeira instância, a nove anos e meio de prisão. E a sociedade parece bem dividida politicamente.
José ‘Pepe’ Mujica – Eu acho que o que está acontecendo no Brasil hoje tem antecedentes. Eu não posso separar isso da forma como expulsaram Dilma Rousseff da Presidência.
BBC Brasil – Por quê?
Mujica – Porque é evidente que no Brasil tudo ganhou um tom conspirativo de extrema-direita que está atropelando um conjunto de conquistas e melhoras sociais. E há uma onda regressiva no campo trabalhista para os trabalhadores, isso é um problema sério.
Acho também que existe uma direita muito conservadora que está utilizando, entre outras coisas, a influência de mecanismos da Justiça, tentando frear toda possibilidade de resposta progressista ou mais ou menos a favor da grande maioria.
Atacar Lula, da maneira como o estão atacando, é impressionante. Colocam a eventual venda de um apartamento em uma praia… (o tríplex no Guarujá). Para um homem que foi presidente durante oito anos da principal potência da América Latina e com o antecedente da retirada de Dilma Rousseff do governo… realmente tudo isso gera a imagem de um Brasil muito doente.
E, além disso, aprovam um conjunto de reformas que vão para o passado, (anulando) as medidas que foram implementadas por Getúlio Vargas, que foi um presidente inesquecível e se suicidou por causa da pressão da oligarquia. É como se o Brasil estivesse voltando aos seus piores tempos.
BBC Brasil – O senhor acha…
Mujica – (interrompe) Olha, eu mantenho minha fé no Lula. Eu o conheço há muitos anos. O acusam por um sítio. Uma vez estive no sítio e é muito simples, com uma casinha. Além disso, tem outra coisa, ninguém coloca ênfase no papel das empresas. Parece que as empresas são pecadoras e isso está virando moda no mundo.
BBC Brasil – Como assim? O senhor pode explicar?
Mujica – Por exemplo, a Volkswagem pode organizar uma farsa de caráter internacional (no caso dos carros com um programa que reduzia as emissões de gases poluentes dos motores em testes regulatórios), pagar multas de milhões de dólares, e ninguém vai preso. E as empresas continuam enormes. E aqui na América Latina as empresas servem como que para destroçar a confiança pública.
Tudo isso que está acontecendo no Brasil acaba interrompendo, no longo prazo, a esperança em uma sociedade. E na vida dos homens, das mulheres, das sociedades, precisamos ter esperança. O Brasil está cultivando o não acreditar em nada. E depois disso o que vem? O niilismo? O golpe de Estado?
Uma coisa é ser de direita e outra, conservador. O que há no Brasil está com cara de falso moralismo, e o fascismo na Europa se apresentou com cara de falso moralismo também.
BBC Brasil – Mas o senhor acha que pode ocorrer um golpe de Estado no Brasil hoje?
Mujica – É que no lugar de se utilizar militares para golpes de Estado, agora se utilizam os subterfúgios jurídicos para a mesma coisa. E isso me provoca imensa dor porque o Brasil é muito importante para toda a América Latina.