Filosofia blasfema de botequim
─ Já blasfemou antes?
─ Nunca, é a primeira vez. E devo isso a vocês e a essas duas garrafas desse delicioso uísque nacional envelhecido em tonéis de bálsamo, a cachaça mais antiga do Brasil. É realmente um bálsamo esse líquido precioso, alívio e consolação para nossa vidinha medíocre. Aqui eu posso tudo, sei de tudo e não devo nada a ninguém!
Melquisedeque espremeu o limão no copo, engoliu a dose, fitou os dois camaradas e limpou os beiços com o lenço, gesto antigo, demonstrativo de sua civilidade e preparo, formado que foi pela Faculdade de Tecnologia Superficial Aplicada do Vale da Titica. Suas gordas mãos, sujas de sebo da salsicha do tira-gosto, dilaceravam os bolinhos de frango e desenhavam trajetórias no ar pestilento do boteco, enquanto esclarecia os grandes segredos do universo.
─ Sabe pra que serve a gordura? Ela cria um bloqueio nas paredes do intestino e isso faz com que o álcool demore a encharcar o bebedor. Antes de encher a cara, tome uma colher de azeite de oliva e beba como o rei Belzabar. Ele dava banquete onde passava três dias bebendo vinho com os amigos e as concubinas. Num desses banquetes, o rei teve uma crise de delirium tremens. Sabe o que é delirium tremens? Claro que não! Aí o rei Belzabar viu uma mão misteriosa escrevendo na parede do palácio. Ordenou o rei que trouxessem os astrólogos, os adivinhadores e os maiores macumbeiros do reino para decifrar a escrita da mãozinha. Mas todos eles eram analfabetos e não foi traduzido o código secreto. Essa história termina com uma grande ressaca moral. Tá na Bíblia, no livro de Daniel. E você, já blasfemou alguma vez?
─ Eu? Se for uma ofensa, eu sou um cara inofensivo. Se for caso de impotência de alcoolista, positivo.
A erudição de Melquisedeque fazia estragos nas mentes embotadas dos parceiros. Segundo a opinião de alguns poucos amigos, tirando as baleias azuis, o velho Melquisedeque é proprietário da maior massa cinzenta do reino animal.
─ Melque, e o bem e o mal? Já foram tentadas fórmulas secretas, químicas, científicas e as preces mais fortes, os maiores pensadores nunca apresentaram a solução desse enigma: existe o bem e o mal, o certo e o errado? Por exemplo, nessa humilde vida que algum deus me destinou, vida pequena e inútil nos fundos de um bar imundo e fazendo uso diariamente de suco da bagaceira, “existirmos, a que será que se destina?”
─ Evidente: tem o monoteísmo e o dualismo. O dualismo te diz que o mal não foi criado por nenhum deus, é independente. O monoteísmo garante que um Deus todo-poderoso permite o sofrimento no mundo. O Bem e o Mal lutam pelo controle da bagaça toda.
─ E depois de tuas muitas leituras, Melque, a que conclusão tu chegas?
─ Mané, quebra o galho aqui, traz mais uma cerveja pra lavar! Meus amigos, eu cheguei a um assombroso e terrífico concluimento: realmente, há um Deus todo-poderoso que determina geral os procedimentos deste mundo velho. E Ele é um Deus muito maléfico e pernicioso. Eu diria, maligno mesmo!
Os dois parceiros não tiveram estômago para a blasfêmia metafísica do ilustrado Melquesedeque. Passaram o resto da tarde falando em futebol e fugindo do assunto. E fazendo o sinal da cruz. Ao cair da tarde avinhada, Melquesedeque fez um ligeiro aceno de Grão-Mestre daquela Ordem de pinguços e enunciou: “o Altíssimo Javé é Maligno, é perverso, mas ninguém em toda a história das deidades teve coragem para afirmar isso. Só o sábio Melquesedeque tem estômago para essa crença. Já blasfemaram antes?”