As inconstitucionalidades da nova lei do saneamento
O saneamento básico é definido constitucionalmente e legalmente como um serviço público. Ou seja, o ente responsável pelo serviço pode prestá-lo diretamente ou por meio de concessão ou permissão (artigo 175, caput, da Constituição [10]).
A Constituição de 1988 menciona o saneamento básico em alguns dispositivos, notadamente os artigos 21, XX [1], 23, IX [2], e 200, IV [3]. As diretrizes nacionais da política de saneamento básico devem ser estipuladas pela União (artigo 21, XX, da Constituição de 1988), o que foi configurado por meio da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, agora alterada pela Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020.
A Lei nº 14.026/2020 introduz várias alterações nas competências da Agência Nacional de Águas (ANA), renomeada para Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. A pretensa abrangência da atuação da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico como órgão com competência de instituir normas de referência para a regulação dos serviços de saneamento básico [4] seria contestável pelo fato de buscar atuar em matérias de competência municipal (saneamento básico — artigo 30, V, da Constituição) [5]. A delegação da regulação do serviço público de titularidade dos municípios para um ente autárquico federal pode ser contestada, ultrapassando a possibilidade prevista nos artigos 21, XX, e 24, §1º, da Constituição de 1988.
A única hipótese possível, no caso do saneamento básico, seria a prevista nos artigos 8º, 9º, II, 15, I e 23, §1º, da Lei nº 11.445/2007: a delegação expressa para outro ente da federação da fiscalização, não da regulação, do serviço público de saneamento básico por parte de seu titular, o município. Sem delegação expressa de cada um dos municípios, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico não tem competência para atuar na fiscalização do serviço público de saneamento básico. Mesmo assim, a inovação do artigo 23, §1º-A e §1º-B, da Lei nº 11.445/2007 [6], introduzido pela Lei nº 14.026/220, pode ser contestado por violar a estrutura federativa (artigos 18, 19, III, e 25, §3º, da Constituição de 1988) e a atuação conjunta dos entes federados no tocante ao saneamento básico (artigo 23, IX).
Há, aqui, nessa ampliação de competências do órgão autárquico federal uma nítida confusão entre o serviço de saneamento básico e a gestão de recursos hídricos (artigo 12, caput, da Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, e artigos 2º, XII, e 4º da Lei nº 11.445/2007 [7]). São duas etapas distintas, dois serviços públicos distintos. A água é a matéria-prima do serviço de saneamento, mas são serviços de titularidades distintas: as águas são de titularidade da União (artigo 20, III, da Constituição [8]) ou dos Estados (artigo 26, I, da Constituição [9]). Portanto, o ente responsável pela outorga da utilização dos recursos hídricos é a União ou o Estado. O município é o ente titular da prestação dos serviços de saneamento, não é titular dos recursos hídricos.
O saneamento básico é definido constitucionalmente e legalmente como um serviço público. Ou seja, o ente responsável pelo serviço pode prestá-lo diretamente ou por meio de concessão ou permissão (artigo 175, caput, da Constituição [10]). A Lei nº 14.026/2020 ignora a possibilidade da prestação direta e busca inviabilizar a atuação estatal no setor, privilegiando a concessão para o setor privado.
No caso dos serviços públicos, como o saneamento básico, a concessão de direitos exclusivos justifica-se em virtude das dificuldades de produzir um bem ou serviço por mais de um agente econômico. Trata-se de um monopólio natural concernente a bens coletivos em que o uso individual não reduz as possibilidades de consumo por parte de outros agentes. São bens de interesse geral que implicam em intervenção pública e na instituição de um monopólio legal. Além disso, pressupõem o emprego do domínio público (no caso, as águas), o que limita o número de operadores.
O poder público, em qualquer de seus níveis federativos, não é obrigado a solicitar a colaboração do setor privado, deixando, assim, de atuar com meios próprios ou de outro ente da federação. Quando a Administração Pública desempenha determinada atividade ou presta determinado serviço utilizando meios próprios ou de outro ente da Federação (os “contratos de programa”,”“operações in house” ou “in house providing”) não se aplica a legislação sobre licitações. Nesse sentido, a legislação brasileira (artigo 24, XXVI, da Lei nº 8.666/1993 [11]) permite a dispensa de licitação nos casos em que um ente da federação celebre contrato de prestação de serviços públicos com outro ente ou órgão da sua Administração indireta (como uma sociedade de economia mista).
A Lei nº 14.026/2020, ao alterar a redação dos artigos 8º, §1º, II, e 10 da Lei nº 11.445/2007, determina a proibição dos “contratos de programa” no setor de saneamento básico [12], violando não só as possibilidades de atuação direta determinadas pelo artigo 175, caput, da Constituição de 1988, como comprometendo a atuação conjunta dos entes da Federação prevista no artigo 23, IX, da Constituição de 1988.
Não bastassem essas medidas, o governo federal impôs, ainda, uma série de exigências para o financiamento do setor de saneamento básico (artigo 4º-B, §2º, da Lei nº 9.984/2000; artigo 50 da Lei nº 11.445/2007 e dispositivos da Lei nº 13.529, de 4 de dezembro de 2017, todos com a redação introduzida ou alterada pela Lei nº 14.026/2020). Contrariando totalmente a autonomia política dos municípios, a União exigiu que eles se adequem à sua política de privatizações, privilegiando a concessão dos serviços ao setor privado ou as parcerias público-privadas, desestimulando a prestação direta do serviço público. Dessa forma, todos os municípios que buscarem recursos para o setor de saneamento são obrigados a concordar com a abertura do setor aos agentes privados. A relação que deveria ser de coordenação torna-se uma relação de subordinação, violando o pacto federativo.
A Lei nº 14.026/2020 viola, ainda, o artigo 241 da Constituição de 1988, ao esvaziar, por meio de lei ordinária (alteração da redação do artigo 8º, §1º, I e II, da Lei nº 11.445/2007), o conteúdo da gestão associada de serviços públicos prevista constitucionalmente, restringindo os consórcios à esfera intermunicipal e limitando-os ao financiamento das iniciativas de implementação de medidas estruturais. A referida lei instaura, ainda, a possibilidade de agrupamento por lei ordinária de municípios não limítrofes por determinação dos Estados ou da União (artigos 3º, VI, “b” e “c”, e 52, §3º, da Lei nº 11.445/2007, com a redação alterada pela Lei nº 14.026/2020), indo além da competência constitucionalmente atribuída exclusivamente aos Estados-membros no artigo 25, §3º, da Constituição, bem como ultrapassando a hipótese constitucionalmente prevista de atuação regional da União no artigo 43 da Constituição.
Este levantamento prévio e não exaustivo dos dispositivos da Lei nº 14.026/2020 já consegue demonstrar a sua inconstitucionalidade e os graves prejuízos ao setor de saneamento básico e à própria estrutura cooperativa da federação brasileira que poderão decorrer de sua eventual aplicação.
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[1] Artigo 21, XX da Constituição de 1988: “Compete à União: XX – instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos”.
[2] Artigo 23, IX da Constituição de 1988: “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: IX – promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”.
[3] Artigo 200, IV da Constituição de 1988: “Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: IV – participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico”.
[4] Artigos 2º e 3º da Lei nº 14.026/2020, que alteram vários dispositivos da Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000.
[5] O Supremo Tribunal Federal já decidiu neste sentido proposto aqui na ADI nº 1.842-5/RJ (Rel. original: Ministro Maurício Correa; Rel. Ministro Luiz Fux; Rel. para o Acórdão: Ministro Gilmar Mendes), DJ 16.09.2013.
[6] Esses dispositivos introduzem a possibilidade, sem nenhum fundamento constitucional, do Município escolher qual agência reguladora irá ter competência sobre o seu serviço de saneamento, podendo ser uma agência de outro Estado da Federação que não o em que está localizado o Município.
[7] Artigo 12, caput da Lei nº 9.433/1997:“Estão sujeitos a outorga pelo Poder Público os direitos dos seguintes usos de recursos hídricos: I – derivação ou captação de parcela da água existente em um corpo de água para consumo final, inclusive abastecimento público, ou insumo de processo produtivo; II – extração de água de aqüífero subterrâneo para consumo final ou insumo de processo produtivo; III – lançamento em corpo de água de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, tratados ou não, com o fim de sua diluição, transporte ou disposição final; IV – aproveitamento dos potenciais hidrelétricos; V – outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da água existente em um corpo de água”.
Artigo 2º, XII da Lei nº 11.445/2007: “Os serviços públicos de saneamento básico serão prestados com base nos seguintes princípios fundamentais: XII – integração das infraestruturas e dos serviços com a gestão eficiente dos recursos hídricos”.
Artigo 4º da Lei nº 11.445/2007: “Os recursos hídricos não integram os serviços públicos de saneamento básico. Parágrafo único – A utilização de recursos hídricos na prestação de serviços públicos de saneamento básico, inclusive para disposição ou diluição de esgotos e outros resíduos líquidos, é sujeita a outorga de direito de uso, nos termos da Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, de seus regulamentos e das legislações estaduais”.
[8] Artigo 20, III, da Constituição de 1988: “São bens da União: III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais”.
[9] Artigo 26, I, da Constituição de 1988: “Incluem-se entre os bens dos Estados: I – as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União”.
[10] Artigo 175, caput, da Constituição de 1988: “Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.
[11] Artigo 24, XXVI, da Lei nº 8.666/1993: “É dispensável a licitação: XXVI – na celebração de contrato de programa com ente da Federação ou com entidade de sua administração indireta, para a prestação de serviços públicos de forma associada nos termos do autorizado em contrato de consórcio público ou em convênio de cooperação”.
[12] O veto presidencial ao artigo 16 da Lei nº 14;026/2020 apenas acentua a inconstitucionalidade da vedação dos “contratos de programa”, embora o veto ainda seja passível de reexame por parte do Congresso Nacional.
Fonte: www.conjur.com.br
Gilberto Bercovici é advogado, professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor nos programas de pós-graduação em Direito da Uninove e do Mackenzie.
Revista Consultor Jurídico, 27 de setembro de 2020, 8h02