A solidão organizada
A repetição de um fenômeno social moderno, típico das sociedades urbanas, há certo tempo tem me chamado atenção não apenas pelo grau de sua efetividade em si. Até porque ainda não é possível vislumbrar os resultados práticos da sua ocorrência cada vez mais comum no seio das grandes cidades. Portanto, o aspecto desse fenômeno que tem mexido com meus neurônios inquietos – algo que já lhes explicarei – é a sua ligação mais que visceral com o mundo da internet, a rede mundial de computadores, a teia virtual que reformulou de forma radical a noção grega de que a vida nada mais é do que um novelo o qual sistematicamente desenrolamos, até parti-lo de vez, esse tão frágil e contingencial fio de Ariadne.
Talvez seja justamente a noção inconsciente de que a vida é frágil e radicalmente contingencial que venha movendo as pessoas na direção do fenômeno que referi acima e passo a analisar em pinceladas aleatórias de opinião e de registro factual. Falo da reunião cada vez mais comum das pessoas, no âmbito das grandes cidades mundiais, em torno de marchas organizadas através da internet com o objetivo de dar visibilidade a certas causas políticas e sociais até bem pouco tempo fora da agenda geral das discussões públicas.
Estão nesse âmbito, por exemplo, a marcha da maconha em várias cidades brasileiras; a marcha das vadias em Boston, nos Estados Unidos; a marcha das margaridas, com origem em Recife, mas com data marcada para acontecer em Brasília e com a presença significativa do grupo de teatro feminista pernambucano, Loucas de Pedra Lilás; a marcha (parada) do orgulho gay, já transformada em festa anual a um só tempo colorida e contundente; a não menos festiva marcha dos mortos-vivos, realizada no último sábado (21), em Praga, capital da República Tcheca, e por aí vai.
À parte a parte efetivamente social do fenômeno, o que me chama atenção na sua constituição, como já antecipei, é a sua conjunção clara com outros dois âmbitos da convivência humana que, por sua centralidade na vida tanto individual quanto coletiva das pessoas, nunca sai de pauta: as esferas da comunicação e da política. É aqui, na confluência desses dois aspectos da convivência social, a meu ver, que a coisa pega. Digo isso porque tendo a concordar com o filósofo francês da Comunicação, Dominique Wolton, quando ele ao analisar o papel da internet e das chamadas redes sociais na vida das pessoas assegura que a internet não serve para a constituição da democracia: “Só funciona para formar comunidades” – em que todos partilham interesses comuns-, “e não sociedades” – onde é preciso conviver com as diferenças.
Apesar de os fatos em torno do fenômeno aludido acima parecer dizer o contrário da assertiva de Dominique Wolton, insisto que ele continua a ter razão na sua observação de que a internet deve ser vista apenas como um progresso técnico na direção da comunicação humana, algo que para se realizar plenamente necessita do encontro concreto (e não apenas virtual) entre as pessoas. Entendido isto do ponto de vista do ser coletivo, pensemos agora o ser humano compreendido no seu âmbito individual.
Tenho pensado cá com os meus botões que essas marchas sócio-grupais todas denunciam algo muito mais além do que elas inicialmente se propõem. Elas me parecem um grito sutil, reverberado no âmbito político, que amplifica um paradoxo constitutivo das sociedades contemporâneas das redes de comunicação, que é o de ser formadas por indivíduos radicalmente isolados nas suas instâncias de ser e de estar no mundo, e, simultaneamente, ligados por fios virtuais e invisíveis que a despeito de os unirem, os afastam peremptoriamente. Daí a necessidade de marcharem em solidão organizada. Será?