TOCA DO LEÃO

A lista de Irene

Não tem “A Lista de Schindler”? Pois vou filmar “A lista de Irene”, um documentário falando sobre a caderneta de anotações de minha amiga e ex-professora Irene Marinheiro. O livrinho contém nomes e atas de reuniões do Grupo Experimental de Teatro de Itabaiana, fundado em 1976 na cidade de Itabaiana.

“A Lista de Schindler” é a história de como Oskar Schindler conseguiu salvar mais de mil judeus da morte durante o holocausto judeu na Alemanha nazista. A lista de Irene é a crônica de um grupo de rapazes e moças que conseguiram se salvar da mediocridade e pequenez cultural de uma cidadezinha do interior da Paraíba, em plena efervescência da ditadura dos militares.

Já comecei a filmar os depoimentos daquelas pessoas. Iniciei pela própria Irene e seu marido, professor Zenito Oliveira, que relembrou, por exemplo, o dia em que ele fugiu para Piancó, sua terra natal, em plena festa de Nossa Senhora da Conceição. É que ele comprou 20 galetos para vender na barraca do grupo de teatro, mas teve prejuízo total: Agnaldo Pabulagem comeu os galetos e a barraca do GETI veio abaixo, desmoronou por ter sido construída com elementos da irresponsabilidade, amadorismo e inabilidade empresarial daquela rapaziada boa. Zenito fugiu do prejuízo e da vergonha de tamanho mico, um dos muitos pagos pela turma getiana.

Estivemos no Bar de Osvaldo, no Geisel, filmando depoimentos de Marcos Veloso, Roberto e Romualdo Palhano, além de Normando Reis, todos getianos das primeiras fornadas. O diretor de fotografia é nosso compadre Jacinto Moreno, ele também ator e dramaturgo.

Do nosso grupo saíram escritores como Romualdo Palhano, atrizes do naipe de Palmira, a artista plástica Jandira Lucena, o compositor e músico Jacinto Júnior e poetas capazes iguais ao meu compadre Sanderli Silva. Os demais foram cuidar de suas vidas e venceram como os advogados Jurandi Pereira, Joacir Avelino, Zé Ramos, Normando Reis, Carlos Alberto Lucena, Joaquim Lopes e Flaviano Almeida. Todos eles levaram consigo o que a vivência das propostas e contexto que mobilizaram tanta gente boa, há mais de quarenta anos, deixaram em suas mentes. Zé Ramos um dia me confessou: “comecei a aprender a ver o mundo com o GETI”.

Aqueles que fizeram parte da aventura artística e política, os que não vivem mais na cidade e alguns que ainda moram lá precisam ver a preciosidade que achei na casa dos amigos Irene Marinheiro e Zenito Oliveira, dois dos fundadores do conjunto cênico. Trata-se de uma caderneta de anotações das reuniões do grupo, uma espécie de diário que será de grande valia para nosso documentário.

Na caderneta, os nomes dos componentes, assinaturas, locais de reunião, contendas, brigas, sonhos, ideias soltas e incoerentes, aspirações e conquistas daquele pessoal que um dia sonhou abrir para novas possibilidades aquela geração de jovens matutos, através da arte e da cultura. Gente que eu nem lembrava que fosse fundadora, igual a nossa amiga Luciana Benício de Castro, hoje funcionária dos Correios em Itabaiana. O casal Frederico Guilherme de Araújo Lopes e Branca, ele já falecido, aparece no livro como membros fundadores do grupo teatral amador, cuja primeira peça, “Auto da Paixão”, levou milhares de pessoas às ruas da cidade em uma Sexta-feira Santa, constituindo-se um fenômeno de massa naqueles tempos.

Recordamos histórias saborosas dos ensaios, dos companheiros, das brigas e das cachaçadas homéricas. O dia em que quase fomos abatidos a tiros de rifle no sertão da Paraíba, outra noite em que fomos expulsos da Igreja de Itabaiana pelo padre raivoso, só porque a turma espetava baganas de cigarros nas bocas dos santos. O ator mais burro do mundo, Enoque de Macena, que nunca acertava o beijo traiçoeiro em Jesus na cena do Jardim das Oliveiras. Sempre beijava o homem errado. Acabou sendo expulso juntamente com Severino Penca Preta e Rossi, conforme anotou o secretário na caderneta, “por conduta daninha aos interesses do grupo, ficando decidido que a comunicação será feita verbalmente, por estarmos de acordo com a extinção de burocracia nos trabalhos”. Vejam que coisa! Três anos antes de o Governo instalar o Ministério da Desburocratização, o pessoal do GETI já se antecipava a Hélio Beltrão e Paulo Lustosa. Aliás, Biu, Enoque e Rossi foram os únicos expulsos do Grupo nesses 34 anos, e eu nem lembro os motivos do tal castigo tão drástico. Zenito acha que foi porque eles assaltaram a geladeira da casa de Zé Tavares no dia da encenação da Paixão de Cristo, mas eu não sei… Há controvérsias.

As reuniões eram feitas na casa de Emir Nunes, nas casas de Palhano, de Zenito e na do meu pai, na Rua Floriano Peixoto nº 105, onde, segundo o advogado Jurandi Pereira, o grupo foi fundado em 28 de junho de 1976, numa véspera de São Pedro. Uma anotação da caderneta: “Será providenciada a compra de um gravador a prestação, a ser pago pelos componentes do grupo, estabelecendo-se cooperação de R$ 10 mil cruzeiros para cada homem e R$ 5 mil cruzeiros para as mulheres, a ser pago todo dia 30 de cada mês”. Nesse caso, a hoje feminista Irene Marinheiro não exigiu a igualdade entre homens e mulheres.

Uma pérola: “Entre os presentes, foi combinado em 23 de dezembro de 1976 que haverá recesso dos trabalhos até o dia 2 de janeiro de 1977, quando haverá reunião, na condição de ser expulso o não comparecido”. O absentismo era um problemão no grupo! Na hora das reuniões, estava quase todo mundo tomando goró, festejando a negação de qualquer tipo de autoridade. Mesmo assim, o grupo montou boas peças. “A peleja de Lampião com o Capeta” teve uma carpintaria teatral tão rematada que o grupo apresentou o espetáculo por 34 anos, o que daria até verbete no livro dos recordes.

 

Fábio Mozart

Fábio Mozart transita por várias artes. No jornalismo, fundou em 1970 o “Jornal Alvorada” em Itabaiana, com o slogan: “Aqui vendem-se espaço, não ideias”. Depois de prisões e processos por contestar o status quo vigente no regime de exceção, ainda fundou os jornais “Folha de Sapé”, “O Monitor Maçônico” e “Tribuna do Vale”, este último que circulou em 12 cidades do Vale do Paraíba. Autor teatral, militante do movimento de rádios livres e comunitária, poeta e cronista. Atualmente assina coluna no jornal “A União” e ancora de programa semanal na Rádio Tabajara da Paraíba.

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