A intocável beleza do feio
Hoje o cronista incorpora a entidade Exu que atua sobre a dualidade do homem. E da mulher também, conforme Oxum, orixá das águas doces e das cachoeiras, deusa da união e da variedade. À guisa de explicação, como se escrevia antigamente nos posfácios, o colunista sonhou reunir microcontos com historietas diversas, interligadas pela ideia central das energias opostas, o yin-yang chinês, forças antagônicas e complementares dando caldo a contos banais saídos de um mundo ácido. As narrativas estão aí, situações da vida real pedindo para se adequar ao microconto, só falta a competência.
Na tela do meu PC, meu quase único universo nessa pandemia, foram nascendo as histórias, como esta de Dezinho: “Criado pela mãe (não conheceu o pai), morava na periferia. Quando se instalou no centro, virou filme de suspense. Era o bandido que morreu no assalto ao buzão”. Diferente de Ramiro, a parte sacana e cínica da cidade. ”Passava-se por intelectual para filar bebida e comida nos bares da moda”. Cada um com sua solidão e seu anjo da guarda torto. João Pessoa poética e marginal, com seus cantores de rap e seus candidatos a forrozeiros fuleragem. E suas figuras fragmentadas e espatifadas pelas ruas do Valentina e Mangabeira, como é fiel retrato a poética do rapper Cassiano Pedra: “deixei os meus pedaços pelas ruas / o SAMU recolhe as tripas sujas / ainda tenho a língua e a cabeça / o guarda quer matar as ditas cujas”.
Em outro insólito momento de mau gosto, outro conto fala do cafetão, no fim da noite, abrindo o sigilo bancário e o supercílio da mundana, depois conserta o ventilador, rasga o calendário vencido e espalha lixeira com uma barata extraviada sem regra alguma, perdida. Três perdidos numa noite suja, Plínio marcando aquela monstruosidade banal. A antipoesia da vida e do tempo. Você é um ser humano ou uma ameba? Amebas são sociáveis. Outra ideia para outro microconto: “Entrando no quarto minguante, a feia deixou lá fora sua meia idade, no sinal de trânsito. É uma mulher penosamente mal-apanhada. Seus olhos estrábicos, entretanto, vazam alguma coisa de imponência, um afeto exótico. Frequenta o local desde que um motorista a chamou de ‘bela’. Ouve o eco do enaltecimento toda hora, embarrigou com o sêmen panegírico do sujeito incógnito”. Se tiver título, será “A intocável beleza do feio”.
No mesmo sinal, o bacana parou o carro, aparece o moleque tentando malabares com três tristes laranjas. Possibilidades imediatas: fechar os vidros, olhar para os pés, se ligar na canção imbecil do rádio ou recitar de memória frases de grandes líderes. “As questões sociais devem ser tratadas pelas pessoas diretamente envolvidas nelas.” Quem disse isso? O sinal abriu o verde. O ódio é o de sempre. O segregacionismo, eterno. E o Brasil, acima de tudo”.
As nossas vidinhas podem ser resumidas em apenas alguns contos pequenos. Nesse apanhado de contos resumidos, o contista desvigorado parte para alguns relatos reflexivos sobre as paisagens, as pessoas, o pandemônio e as desigualdades dessa João Pessoa multifacetada. No muro do Zé Américo, poesia sem afetação salienta-se: “A vida é uma dádiva, a vida é uma dúvida, a vida é uma dívida”. Parece com Lau Siqueira, mas não tenho certeza. Um olhar haikai sobre o nosso mundo imediato. Matéria-prima, mesmo, está é nas “camadas inferiores”, no proletariado periférico e cangaceiro. Gente doida, com antipsicótico correndo nas veias, agindo no sistema nervoso central, controlando as neuras com coca e fumo. O isolamento dessas criaturas, com seus encontros com Deus e o Diabo em plena pandemia. Os sobreviventes e suas escuridões, também suas bem-aventuranças eventuais. Como diz o poeta Miró: “O que é mesmo estar vivo? Quando amanhece o dia, eu digo: Tá, Deus, eu ganhei mais uma manhã. O que vou fazer nessa manhã? Amanhã você não sabe se vai ter outro amanhã. Tô sem a bebida, tomando um cafezinho, porque não quero ir embora agora do quintal de Deus”.