TOCA DO LEÃO

Jerimum com G

─ Ei, rapaz – repreendeu minha insigne revisora – jerimum se escreve com J e não com G.

─ Opa, desculpe nossa falha!

Essa revisora é um modelo de honestidade intelectual. Seu culto à norma culta faz com que benquerenças pessoais não interfiram nas suas verdades linguísticas. Isso é fato. Errou, retifica.

É bom esclarecer que a palavra jerimum vem carregada de preconceito latente. Eu quis tomar uma providência, mudar a grafia do fruto da aboboreira, porque todo mundo sabe que rola na região sudestina uma imagem repleta de intolerância, dando conta de que todo nordestino é um guloso comedor de carne de charque, o famoso jabá, com jerimum caboclo, de leite, moranga ou paulista. No Rio Grande do Norte, aquela gentil nação potiguar perde a linha quando é chamada de “comedor de jerimum”.

O dito “Papa-jerimum” veio do século dezenove. Conforme o folclorista potiguar Câmara Cascudo, a expressão “papa-jerimum” nasceria na “desastrada administração de Lopo Joaquim de Almeida Henriques, entre 1802 e 1806, quando foi exonerado da capitania Rio Grande, e mandado retirar-se imediatamente pelo Capitão-General de Pernambuco, Caetano Pinto de Miranda Montenegro”. Diz a lenda que Lopo Joaquim “mandou fazer roçados de jerimum pela tropa, e, na safra, ele carregava a maior parte da produção das abóboras”. Ficou a alcunha. Em função da nossa cabeça chata, os maliciosos irmãos do sul/sudeste também nos cognominam de “cabeça de jerimum”. De modo que, por mim, alterava-se o termo “jerimum”, passando a se escrever com G. Eles até poderiam continuar nos chamando de “cabeça de jerimum”, com J, mas a galera dos “paraíbas” se vingaria, intitulando-os de amarelos analfabetos.

Levada a questão ao poeta e africanista Dalmo Oliveira, esse teórico das culturas do terceiro mundo ensinou que a abóbora tem origem na América, onde foi agricultada há cerca de nove mil anos pela civilização Olmeca, e seu cultivo foi adotado pelas civilizações Maia, Asteca e Inca. No Brasil, o fruto da aboboreira tem seu nome ligado aos silvícolas. Toda palavra que tem como princípio a fala dos nossos índios se escreve com J. Ele foi peremptório: “seu sonho é escrever jerimum com G? Escreva. No entanto, sua chance de alterar a designação da fruta é igual à de uma aranha numa floresta em chamas, como diria o poeta maldito Charles Bukowski, a menos que a floresta seja aquela idealizada pelo Presidente: úmida, e, portanto, não inflamável. Mas, abra os olhos e reconheça a poesia encravada na questão. Quem revolucionou a culinária à base de jerimum? Foram nossos ancestrais africanos. Quem é o guardião da comunicação? Exu! E o que doutrina Exu? Sendo a entidade que baixa, personificado, nas diversas perspectivas do conhecimento e percepção, Exu bate de frente com todo poder que quer controlar e regular os dizeres e expressões. O orixá da comunicação é frontalmente contrário a uma ordem única. Se você quer escrever jerimum com G, está liberado pelas divindades do Candomblé, porque tudo é poesia”.

Caiu até no Enem. A prova apresentou, em 2017, o seguinte poema de um menino de 12 anos, morador do sítio Gerimum, na aba da serra da Borborema:

Este é o meu lugar

Meu Gerimum é com G

Você pode estranhar

Eu não ligo pra você

Gerimum aqui se planta

Comemos como purê

Nós só somos esquisitos

Pra gente que sabe ler

Oscilante entre as diretrizes e a tradição, o professor defensor das regras e padrões linguísticos assim pontificou: “De acordo com os dicionários, jerimum é grafado com “j”. No entanto, o poema utiliza o termo “gerimum” com “g”, para afirmar a relação do eu lírico com o seu lugar, que independentemente da forma que é grafada, representa a afetividade com o local, sem se importar com a norma culta, pois a intenção comunicativa é a mesma”.

Fábio Mozart

Fábio Mozart transita por várias artes. No jornalismo, fundou em 1970 o “Jornal Alvorada” em Itabaiana, com o slogan: “Aqui vendem-se espaço, não ideias”. Depois de prisões e processos por contestar o status quo vigente no regime de exceção, ainda fundou os jornais “Folha de Sapé”, “O Monitor Maçônico” e “Tribuna do Vale”, este último que circulou em 12 cidades do Vale do Paraíba. Autor teatral, militante do movimento de rádios livres e comunitária, poeta e cronista. Atualmente assina coluna no jornal “A União” e ancora de programa semanal na Rádio Tabajara da Paraíba.

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