Comissão da Verdade responsabiliza 377 por crimes durante a ditadura
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, entregue nesta quarta-feira (10) à presidente Dilma Rousseff, aponta 377 pessoas como responsáveis diretas ou indiretas pela prática de tortura e assassinatos durante a ditadura militar, entre 1964 e 1985.
O documento consolida o trabalho da comissão, após dois anos e meio de audiências públicas, depoimentos de militares e civis e coleta de documentos referentes ao regime militar.
Segundo o documento, a identificação da autoria dos crimes foi feita com base em documentos, depoimentos de vítimas e testemunhas, inclusive de agentes públicos que teriam participado da repressão.
A indicação dos responsáveis não implicará responsabilização jurídica aos acusados, já que a Comissão da Verdade não tem poder para puni-los.
Mesmo assim, ao final, o documento recomenda que os agentes sejam processados individualmente na Justiça. “Determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica – criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado […] Que sejam instaurados processos voltados à responsabilização dos autores das violações, inclusive na esfera criminal, bem como o direito das vítimas e seus familiares à obtenção de reparação”, afirma a comissão no relatório. Juristas, porém, questionam a possibilidade de punição.
O texto também pede que as Forças Armadas reconheçam a responsabilidade institucional por crimes no período. “É imperativo o reconhecimento da responsabilidade institucional das Forças Armadas por esse quadro terrível […] Impõe-se o reconhecimento, de modo claro e direto, como elemento essencial à reconciliação nacional e para que essa história não se repita”, diz o documento.
Ao todo, a comissão recomenda a adoção de 29 medidas a serem adotadas com o intuito de “prevenir graves violações de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover o aprofundamento do Estado democrático de direito”.
A comissão dividiu os 377 agentes apontados como responsáveis pelos crimes em três categorias, de acordo com a participação de cada um: responsabilidade político-institucional; responsabilidade pela gestão de estruturas e procedimentos; e responsabilidade pela autoria direta nos crimes.
Muitos nomes relacionados pela CNV estão listados em mais de uma categoria.
Responsabilidade Político-institucional
A primeira categoria (“responsabilidade político-institucional”) reúne agentes do Estado que, segundo a comissão, tinham a função de criar, planejar e decidir políticas de perseguição e repressão de opositores ao regime militar, embora sem participação direta nos crimes.
Figuram na lista cinco ex-presidentes:
– Castello Branco, primeiro presidente do Brasil pós-golpe militar (entre abril de 1964 e março 1967) e criador do Serviço Nacional de Informações (SNI);
– Arthur da Costa e Silva (presidente entre março de 1967 e agosto de 1969), sucessor de Castello Branco, e responsável pelo Ato Institucional número 5, principal instrumento legal de repressão, que suspendeu garantias constitucionais;
– Emílio Garrastazú Médici (presidente da República entre outubro de 1969 e março de 1974), responsável pela criação dos Destacamentos de Operações de Informações-Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi);
– Ernesto Geisel, presidente entre março de 1974 e março de 1979;
– João Baptista Figueiredo, que chefiou o gabinete militar durante o governo Médici e foi presidente da República entre março de 1979 e março de 1985.
Também fazem parte dessa categoria oficiais que integraram a junta militar que governou o país entre 31 de agosto e 30 de outubro de 1969 (durante o período em que o então presidente Arthur Costa e Silva se afastou devido a um derrame cerebral – ele morreu em dezembro daquele ano), além de ministros militares das Forças Armadas e chefes do Serviço Nacional de Informações (SNI).
Gestão de estruturas e procedimentos
Na categoria “responsabilidade pela gestão de estruturas e procedimentos”, foram listados agentes que, mesmo sem terem cometido crimes diretamente, permitiram, segundo a comissão, que violações aos direitos humanos ocorressem em unidades do Estado que estavam sob sua administração.
Integram a lista comandantes de unidades das Forças Armadas, chefes de departamentos e delegacias da Polícia Civil, chefes de institutos médicos legais e órgãos estaduais de perícia criminal, diplomatas e comandantes da Polícia Federal e de polícias militares.
Entre os nomes da lista está o do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que afirmou em depoimento à CNV que a presidente Dilma Rousseff participou de “organizações terroristas”com intenção de implantar o comunismo no Brasil e que, se os militares não tivessem lutado, o Brasil estaria sob uma “ditadura do proletariado”.
Durante o período em que Ustra chefiou o DOI-Codi do II Exército, em São Paulo, foram registradas, de acordo com o relatório, ao menos 45 mortes e desaparecimentos forçados.
Também faz parte da lista o general reformado José Antonio Nogueira Belham, que comandou o DOI-Codi do Rio de Janeiro.
Ele foi denunciado criminalmente pelo Ministério Público Federal em maio deste ano por homicídio e ocultação de cadáver do ex-deputado Rubens Paiva.
Ele também é indicado pela comissão como responsável por diversos casos de tortura, detenção ilegal e homicídios. Em depoimento à CNV, Belham optou por permanecer calado.
Autoria direta de crimes
A última categoria indicada pela comissão (“responsabilidade pela autoria direta de crimes”) lista militares e agentes diretamente envolvidos em mortes, desaparecimentos forçados e torturas de opositores ao regime.
De acordo com o relatório, os responsáveis pela “autoria direta” dos crimes agiram sob coordenação e subordinação hierárquica de instâncias superiores do governo militar.
O documento aponta que os agentes “especializados na prática de graves violações de direitos humanos” estavam lotados em gabinetes de ministros, no comando das Forças Armadas, nos DOI-Codi, nos batalhões e unidades militares e nas delegacias e departamentos de polícia.
Um dos nomes listados nessa categoria do relatório é o do coronel Paulo Malhães, morto neste ano, que, em depoimento à Comissão da Verdade, admitiu ter participado de torrtuas e mortes durante o regime militar. Segundo o relatório, ele é um dos militares envolvidos na morte do deputado Rubens Paiva.
Outro agente apontado pelo relatório como relatório como autor direto de crimes é Sérgio Paranhos Fleury, delegado da Polícia Civil que atuou no Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (Dops-SP) e dirigiu o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) durante o regime militar.
Morto em 1979, ele foi o principal responsável pela captura e morte do político e militante da luta armada Carlos Marighella. Ao menos outras 25 mortes são imputadas a Fleury no relatório.
O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra também é citado pela comissão como um dos agentes diretamente responsáveis pelas violações.
Comissão da Verdade
A Comissão da Verdade foi criada pela Lei 12.528/2011 e instituída em maio de 2012 por Dilma. O colegiado foi constituído a fim de apurar as denúncias de violações de direitos humanos entre 1946 e 1988, período que abrange o regime militar.
Durante os últimos anos, foram colhidos 1.120 depoimentos – 132 de agentes militares –, produzidos 21 laudos periciais e realizadas 80 audiências públicas em 15 estados. No período de funcionamento da comissão, houve sete diligências em Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.
Durante a Copa do Mundo, o vice-presidente dos EUA, Joe Biden, esteve em Brasília e se encontrou com a presidente Dilma Rousseff.
Após a reunião, ele convidou a imprensa para uma entrevista coletiva na Embaixada dos Estados Unidos e anunciou que o país disponibilizaria documentos obtidos por Washington referentes à ditadura brasileira. Ainda em julho, a comissão divulgou no site os documentos entregues pelos EUA.
G1