44 coisas que você precisa saber sobre a Reforma da Previdência

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Aposentados esperam para se cadastrar no sistema de transportes de Santo André, SP (Alessandro Valle/ABCDigipress)

1. A contabilidade mostrada pelo governo para demonstrar o “déficit da previdência” é feita em cima de um conceito que ele próprio inventou. A Constituição federal em seus artigos 194 e 195 é clara. Estabelece as fontes de financiamento e as despesas da Seguridade Social, que engloba Saúde, Previdência e Assistência Social. Este resultado foi positivo até 2015 e teve três anos de resultado negativo exclusivamente pela enorme desaceleração da economia, que afetou as receitas das contribuições que incidem sobre a massa salarial (contribuição de empregados e empregadores) e das contribuições sociais que incidem sobre o faturamento e lucro das empresas (Confins, PIS/PASEP, CSSLL). Além disso, a queda das receitas também ocorreu em função das capturas da DRU (R$ 115 bilhões somente em 2017) e das renúncias fiscais.

2. Se, hipoteticamente, durante os 25 anos nos quais a Seguridade Social foi superavitária os resultados tivessem sido preservados num fundo, este teria mais de 1 trilhão de reais em 2015 e poderia ter financiado o atual ciclo recessivo da economia. Só que os superávits foram gastos em outras áreas, como a gestão da política monetária, bem como em outras finalidades, por meio da DRU, que desvincula até 30% das contribuições sociais não previdenciárias e que foram criadas para financiar a Seguridade Social. A pergunta óbvia que se coloca é: como haveria DRU se não houvesse superávit?

3. O Regime Geral de Previdência Social (RGPS) é dividido em dois subgrupos, o Rural e Urbano. O Urbano, nos anos de atividade econômica forte, apresentou superávit, mesmo considerando-se apenas a contabilização (inconstitucional) utilizada pelo governo desde 1989 – que desconsidera as “contribuições do governo”. E o Rural, supostamente deficitário, também não é, pois as suas receitas não têm origem na Previdência Urbana. Trata-se de um benefício típico da Seguridade Social, que corrige uma injustiça histórica com os trabalhadores do campo, sendo financiado, fundamentalmente, pela COFINS e pela CSLL conforme expresso nos artigos 194 e 195 da CF-88.

4. A previdência dos trabalhadores rurais é um mecanismo para levar justiça social a uma parcela da população que, até 1988, trabalhou em condições injustas, sem direitos trabalhistas, sindicais e previdenciários e, muitas vezes, em regimes de semi-escravidão.

Foi esta aposentadoria que diminuiu a pobreza e o êxodo dos trabalhadores do campo para a cidade. 98% dos benefícios previdenciários concedidos para o trabalhador rural equivalem ao piso do salário mínimo ou menos. Não há privilégio algum nesta parcela da população aposentada. A “Nova Previdência” destrói essa rede de proteção social para os trabalhadores rurais porque muda as exigências para se aposentar de “comprovação de 15 anos de trabalho”, para “contribuição de 20 anos inteiros para o INSS”.

Muitos trabalhadores rurais sequer conseguem comprovar os 15 anos de trabalho completos, expressos pela contribuição sobre a comercialização da agricultura familiar. Quase nenhum conseguirá contribuir por 240 meses dado que a natureza de seu trabalho é incerta, intermitente e muitas vezes informal. A medida voltará a aumentar o êxodo para as cidades contribuindo para a ampliação das periferias das grandes cidades, da criminalidade e da pobreza.

5. A “Nova Previdência” propõe aumentar o tempo mínimo de contribuição de 15 anos para 20 anos, exigindo além disso a idade mínima para aposentadoria. O que todos precisam saber é que 42% dos trabalhadores segurados no Brasil conseguem comprovar, em média, somente 4,9 meses de contribuição por ano.

Isto antes da Reforma Trabalhista, que, deverá rebaixar essa média, em função da precariedade e insegurança das novas modalidades de emprego que foram instituídos.

Com isso, os 5 anos de contribuição a mais que serão exigidos significam, para quase metade dos trabalhadores, 12 anos a mais de trabalho.

Dada as características dramáticas do mercado de trabalho, é provável que a maior parte desses trabalhadores não consigam ter proteção na velhice. Quem conseguir, terá direito a somente 60% da média aritmética de todas as seus contribuições previdenciárias (ou ao salário mínimo, o maior dos dois). Ou seja, a grande maioria dos brasileiros morre antes de se aposentar ou, se sobreviver, terá seus rendimentos rebaixados.

6. Um estudo feito sobre o BPC, Benefício de Prestação Continuada, que é pago aos indivíduos que comprovam invalidez ou uma condição de miserabilidade (renda per capita familiar inferior a % de um salário mínimo) mostra que indivíduos que recebem o benefício têm de 1 ano a 4 anos a mais (respectivamente, homens e mulheres) de expectativa de vida saudável. O corte deste benefício reduz esses anos de vida. Significa, antecipar a morte dessas pessoas.

8. A economia de 1 trilhão proposta pelo governo não corta privilégios, pois, segundo dados que constam da própria PEC 6/2019 elaborada pelo governo, 84% da economia vem da redução de direitos dos beneficiários do RGPS, do BPC e do Abono Salarial.

Mais de 70% desse contingente ganha o piso do Salário Mínimo. Ninguém ganha mais do que o teto de 5.839,45 reais.

É em cima deste contingente de mais de 35 milhões de brasileiros que ganham em média pouco mais de um salário mínimo que é feita quase toda a economia.

9. Cerca de 90% dos quase 35 milhões de brasileiros aposentados pelo RGPS ou que recebem o benefício de prestação acumulada (BPC), ganham somente até 2 salários mínimos.

A quase totalidade desse contingente gasta todo o dinheiro que ganha mensalmente em bens e serviços, nada sobra para poupar.

O Brasil é, segundo o Relatório de Carga Tributária de 2017 (disponível no site do Ministério da Economia) um dos países do mundo que cobra as maiores alíquotas de impostos sobre bens e serviços. Cerca de 50% da arrecadação tributária do país vem destes impostos.

Isto significa que os benefícios pagos pelo RGPS e BPC voltam em boa parte como receita de impostos para o governo.

Cortar estes pagamentos e redirecionar os recursos para o pagamento de juros da dívida tem um impacto direto negativo na arrecadação do governo.

10. O aumento da alíquota dos servidores públicos federais que ganham altos salários, anunciado como medida de “justiça fiscal” é responsável por menos de 2,5% da economia de 1 trilhão. E, da forma radical como está sendo proposta, deve enfrentar grandes dificuldades no campo jurídico para ser aprovada. Ou seja, mesmo esta pequena economia corre sério risco de não existir.

11. A proposta da previdência não altera em nada os “salários e aposentadorias de marajás”. Em parte, porque esse problema já foi resolvido em 2012 com a criação do FUNPRESP, segundo o qual os novos ingressantes no serviço público têm um teto de aposentadoria de R$ 5.800. Em parte porque, para corrigir essa anomalia, bastaria que o “teto constitucional” (nenhum salário pode ser maior que o pago para os ministros do STF) fosse respeitado. Não há absolutamente nada nesta nova proposta que atinja estas pessoas.

12. Nos itens 50 e 51 da proposta de Reforma a Previdência o governo deixa bem claro sua definição de “ricos” e “pobres”, que utiliza para falar em “fim dos privilégios”.

Chama de “ricos” o grupo de trabalhadores que ganha em média 2.251,00 reais e “pobres” os que ganham 1.251,00 reais.

Enquanto a população acha que os “ricos” que serão atingidos são os que ganham aposentadorias enormes, superiores ao teto constitucional, o governo está se referindo aos “ricos” que ganham em média pouco mais de 2 salários mínimos.

O governo assinala, assim, que o regime atual (RGPS) traz justiça social, pois os “ricos” não ganham sequer o dobro dos “pobres”.

Na verdade, o RGPS, por conta dos pisos e tetos existentes, gera um efeito redistributivo enorme e é um dos principais responsáveis pelo Brasil ter uma das menores taxas de pobreza da população idosa entre todos seus pares.

15. Desde 2015, nenhum servidor público que ingressar no sistema pode se aposentar acima do teto de 5.859,45 reais. A regra que coloca os tetos dos benefícios dos servidores públicos iguais aos do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) já existe desde 2012, o que impedirá as super aposentadorias no futuro. Não é verdade que a “Nova Previdência” fará isso, pois isso já está em funcionamento há seis anos.

14. A idade mínima de 65 anos para se aposentar (homens) e 60 anos (mulheres) já está na Constituição desde 1998 (Artigo 201, parágrafo 1). Não é a nova Reforma que está trazendo esta novidade (apenas no caso das mulheres está aumentando em 2 anos a idade mínima exigida para se aposentar, para 62 anos).

O que a reforma faz é ampliar de 15 para 20 anos o período de contribuição e rebaixar o valor da aposentadoria (60% da média dos salários no caso do trabalhador ter trabalhado somente o período mínimo).

Ou seja, na prática está fazendo com que aqueles que ainda consigam com as novas regras se aposentar aos 65 anos de idade passem a ter direito a uma aposentadoria menor, economizando este dinheiro para o governo.

15. No caso da Aposentadoria por Tempo de Contribuição (30% do total), em 2015 já foram introduzidas regras que impedem que as pessoas se aposentem cedo demais recebendo integralmente seus benefícios.

Hoje, por exemplo, um homem que tenha contribuído por 35 anos precisa ter 61 de idade para atingir os 96 pontos exigidos pela lei.

Mas, legislação já aprovada (fator progressivo) eleva essa pontuação para 100 pontos a partir de 2028 (65 anos de idade e 35 anos de contribuição, um padrão semelhante ao praticado em países desenvolvidos).

A proposta de Bolsonaro eleva essa pontuação para 105 pontos a partir de 2028. No caso das mulheres, a pontuação aumenta 14 pontos em 14 anos, passando dos atuais 86 pontos para 100 pontos no início da década de 2030.

Observa-se, assim, que, mais uma vez, a ideia da Reforma não é fazer justiça atuarial (esta já está feita), mas economizar dinheiro diminuindo o numero de pessoas que consegue se aposentar.

16. A nova reforma, ao aumentar o tempo de contribuição mínimo do RGPS de 15 para 20 anos, faz com que na prática os trabalhadores demorem muito mais do que cinco anos a mais para se aposentar. Isso porque são precisos 60 meses completos de trabalho.

O problema é que nos trabalhadores mais pobres a informalidade é maior do que na classe média e nos ricos. Logo, para eles, o prazo adicional será, na média, o maior de todos.

Só que são exatamente estas as pessoas que tem menor expectativa de vida. Com isso, para um contingente enorme de pessoas que se encontram nesta situação, a Reforma Proposta faz com que a morte ganhe a corrida e chegue antes da aposentadoria enquanto os ricos seguirão tendo acesso a ela, mesmo se aposentando mais tarde.

A reforma, portanto, magnifica na velhice a injustiça social existente nos anos de atividade laborai.

17. Em 2010, 3.875 municípios tinham nos benefícios previdenciários, pagos pelo RGPS a seus habitantes, uma receita maior do que o Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Como 84% da “economia” prevista pelo governo é em cima do RGPS, Abono e BPC, estes municípios terão suas economias afetadas diretamente e severamente pela reforma.

18. Estudo do IPEA mostra que os benefícios pagos ao BPC têm um efeito multiplicador de 1,38 no PIB. Os pagos no RGPS um efeito multiplicador de 1,23. Já os pagos nos juros da dívida pública (destino da maior parte da economia de 1 trilhão proposta) tem efeito multiplicador de 0,71, ou seja, freiam a economia. Portanto, a proposta inibirá o crescimento para o país.

19. Os estados mais pobres do país têm um percentual de aposentadorias rurais concedidas muito maior do que os estados mais ricos.

Como exemplo, o Maranhão tem cerca de 70% dos benefícios concedidos sendo rurais enquanto São Paulo tem menos de 2%.

A mudança proposta faz com que a maioria dos trabalhadores rurais não consigam ter acesso a este benefício com as novas regras, o que aumentará ainda mais as desigualdades regionais.

20. A justificativa do governo de que a população vai envelhecer e que em 2060 teremos poucos trabalhadores ativos (contribuintes) para muitos aposentados e, portanto, a reforma da previdência é necessária para não inviabilizar o sistema, não é necessariamente verdadeira.

Isto porque não é apenas o trabalhador ativo que financia a previdência, mas também os empregadores e o governo, por meio de impostos gerais.

Além disso, hoje estamos no nível máximo da história recente do país em termos de informalidade (aproximadamente 42%) e desemprego/desalento (aproximadamente 15%), além de níveis mínimos de atividade econômica (PIB real em níveis de 2011).

A mudança demográfica pode ser facilmente compensada pela maior formalidade, menor desemprego e atividade econômica mais robusta, todas estas variáveis que afetam positivamente as receitas da Seguridade Social.

O que parece leviano é perpetuar no modelo matemático a situação atual para projetar déficits imaginários futuramente. Até porque o governo não dispõe de modelo atuarial para fazer projeções de tão longo prazo.

Por fim, o governo não diz em lugar algum quais parâmetros econômicos utilizou para afirmar que em 2060 as contas são insustentáveis no modelo atual de financiamento da seguridade social.

21. O regime de capitalização proposto pelo governo na PEC 6/2019, já foi tentado em cerca de 30 países no mundo. Nenhum destes países era uma democracia industrializada e desenvolvida. Todos países em desenvolvimento. 60% deles já abandonaram o sistema pelos danos que trouxe à sua população idosa e custos adicionais ao país.

22. O primeiro país a implementar o regime de capitalização e contas individuais na previdência no mundo foi o Chile. A proposta é tão polêmica que só pode ser realizada durante o período da ditadura militar que houve no país. Curiosamente, o novo regime só valeu para os cidadãos civis. Os militares, que eram donos do poder, mantiveram as suas aposentadorias no regime público e solidário.

23. Hoje, mais de 30 anos após implementado o regime de capitalização, a taxa de reposição (benefício previdenciário em relação ao último salário) no Chile é em média pouco acima de 15%. Para os pobres é de cerca de 4%. Um nível tão baixo que o governo teve de criar novos programas solidários para que a população idosa não morresse de fome, aumentando assim o custo do novo sistema ao estado.

24. O regime de capitalização aconteceu somente em países em desenvolvimento, que têm uma grande parcela da população pobre e sem educação formal. E é exatamente esta parcela que passa a ter que tomar decisões financeiras complexas como ter que escolher o fundo onde irá aplicar seus recursos, sem ter o menor preparo para tomar esta decisão. Os bancos e seguradoras se beneficiam desta situação e vendem produtos que não se adequam à realidade destas pessoas, lucrando com seu desconhecimento e despreparo.

25. No regime de capitalização, os que ganham menos conseguem poupar menos e têm menos capacidade de escolher o produto mais adequado para investir. Logo, as desigualdades econômicas existentes no país são majoradas pelo regime de capitalização. Vejamos o caso das mulheres. Mulheres costumam ter uma carreira mais curta que os homens, logo têm menos anos de contribuição. Recebem salários menores (normalmente muito menores) pelo preconceito de gênero. E têm expectativa de vida mais longa. No regime de capitalização, puramente atuarial e estatístico, os benefícios a que terão direito são muito menores do que os dos homens, fazendo que a injustiça que vivem na idade adulta seja multiplicada muitas vezes na velhice.

26. O regime de capitalização, em grande parte dos países, não contempla a contribuição do empregador para a aposentadoria do empregado. Este é um dos principais elementos redistributivos da aposentadoria pública, já que faz com que os donos dos meios de produção sejam obrigados a ajudar no sustento da velhice daqueles que não têm acesso aos meios de produção e, portanto, dependem somente de sua força de trabalho (que lhes falta na velhice) para sobreviver.

27. A opção pela capitalização traz para dentro do debate os aspectos ligados à incerteza quanto aos riscos do futuro e os movimentos de especulação típicos do mercado financeiro.

Se considerarmos um período de 35 anos de contribuição, como é a proposta da PEC 06/19, imaginemos como seria o quadro atual de alguém que tivesse começado a contribuir em 1984.

Houve um conjunto de crises, mudanças de padrão monetário ao longo desse período (Plano Cruzado, Plano Cruzado 2, Plano Bresser, Plano Verão, Plano Collor e Plano Real).

Em cada um desses eventos houve perdas monetárias significativas para os poupadores, mas os grandes bancos sempre souberam se defender.

Se o Brasil tivesse adotado o regime de capitalização na mesma época em que ele foi adotado no Chile, os resultados teriam sido desastrosos.

Porque serão melhores então agora?

28. No que se refere à proposta de capitalização, a PEC não define nenhum mecanismo de regulação desse novo segmento a ser criado no mercado financeiro.

O histórico mais recente de agências reguladoras criadas depois da Reforma do Estado e da privatização da década de 1990 deixa evidente que tais órgãos não se revelam capazes de defender os interesses do elo mais fraco na relação mercantil.

O risco, portanto, é que as futuras gerações de participantes desse novo modelo de previdência se encontrem completamente desamparados no horizonte futuro.

29. A Declaração dos Direitos Humanos nos seus artigos 22 e 25 deixa claro que todo cidadão tem direito a um padrão de vida na velhice capaz de assegurar a si mesmo e a sua família saúde e bem-estar, e também a seguridade social. O regime de capitalização em muitos países se tornou na prática, portanto, uma violação a estes direitos.

30. Quando um regime de capitalização é implementado, o governo para de receber contribuições novas, mas segue tendo que pagar as aposentadorias dos segurados que estavam no regime antigo.

Para isso tem que se endividar.

Este chamado “custo de transição” do modelo de repartição para a capitalização individual em quase todos os países que fizeram esse experimento, foi muito maior do que o esperado. No Brasil, país que lidera os rankings mundiais de taxas de juros, e com um volume de benefícios maior do que todos os que já tentaram a capitalização, este custo será enorme e potencialmente explosivo.

31. O regime público de aposentadoria (no caso brasileiro, o RGPS) não precisa gastar em marketing para que as pessoas contribuam para ele.

E também não tem a figura do lucro dado que é gerido pelo Estado.

No regime privado de capitalização, o lucro, a taxa de administração e outras despesas (como a de marketing) fizeram com que, nos países em que foi implementado, o saldo final disponível do trabalhador fosse até 40% menor do que seria no caso de uma aposentadoria pública.

No México, como exemplo, um trabalhador tem que trabalhar 5 anos de sua vida somente para pagar estes custos dos bancos e das seguradoras que gerem seu dinheiro.

32. A maior parte dos países que implementou o regime de capitalização permite que estes fundos, antes de serem pagos de volta ao trabalhador, sejam investidos fora do país.

No caso do Chile, por exemplo, é permitido que até 80% seja investido fora.

Isso significa (neste caso específico) mais da metade do PIB do país que potencialmente deixa de gerar riqueza no país para gerar riqueza em outros países.

Sem contar que, dos cinco fundos de investimentos que operam no Chile, três tem sócios norte-americanos.

33. Durante as crises financeiras, os participantes do regime de capitalização não têm a segurança oferecida pelo estado na aposentadoria pública em relação a seus saldos depositados junto aos bancos e seguradoras.

Na Argentina, durante a crise de 2002, o saldo das contas de capitalização dos trabalhadores teve perdas de 44%.

No Chile, na crise de 2008, as perdas passaram de 60%.

Muitas vezes, as perdas são tão grandes que o estado tem que intervir para que os trabalhadores não fiquem sem condições mínimas de sobreviver sem seus saldos.

Novamente, o custo volta para o estado, enquanto os bancos e seguradoras seguem com seus lucros sem participar destes riscos em quase todos os casos.

34. Um percentual relevante dos saldos mantidos nos bancos e seguradoras nos países que implementaram o regime de capitalização é investido em depósitos bancários nos bancos destes países.

Os bancos por sua vez, emprestam este dinheiro (que recebem através dos depósitos bancários) para seus clientes.

Seguindo o fluxo do dinheiro, pode-se verificar que as pessoas pegam emprestado o seu próprio dinheiro, a taxas altíssimas de juros.

Ou seja, o banco lucra emprestando o dinheiro de seu próprio cliente pra ele.

35. Em 1994 o Banco Mundial produziu um relatório impondo (como contrapartida da ajuda financeira) aos países em desenvolvimento que adotassem o regime de capitalização em substituição ao regime de repartição, que é baseado na solidariedade entre gerações.

O relatório chamava-se: “Averting the Old Age Crisis”. No subtítulo dizia que era uma abordagem que visava estabelecer políticas que protegessem os mais velhos e promovessem o crescimento.

Somente 4 anos depois, o economista chefe do Banco Mundial e prêmio Nobel Joseph E. Stiglitz, escreveu um novo artigo com o título “Rethinking Pension Reform: Ten Myths About Social Security Systems”, reconhecendo o fracasso do modelo de capitalização.

Desde então a maioria dos países que tentou implementá-lo já reestatizou parcialmente ou completamente seu regime de previdência.

A proposta da Reforma da Previdência do Brasil vai no caminho contrário do mundo.

36. O Chile tem sido usado como exemplo a ser seguido porque implementou o regime de capitalização já há bastante tempo e sua economia tem apresentado altas taxas de crescimento.

Não é correto avaliar o crescimento deste país de forma tão simplista e compará-lo ao Brasil.

O Chile é um país com uma economia 7,5x menor que o Brasil e cujas receitas dependem majoritariamente de um recurso natural que valorizou 400% nos últimos 20 anos: o cobre (responsável por cerca de 50% das exportações do Chile).

Se formos usar somente a taxa de crescimento para avaliar o regime ideal a ser adotado, teríamos de pegar o país que mais cresceu na América Latina nos últimos 10 anos: a Bolívia (62% contra 34% do Chile).

Na Bolívia, em 2009, a previdência foi reestatizada, a idade mínima de aposentadoria cortada em 5 anos e vários novos benefícios criados para a população de baixa renda.

Mas mesmo a Bolívia não deve servir de base de comparação.

Devemos nos focar no caso brasileiro, com todas suas particularidades e características.

37. A proposta do governo (PEC 6/2019) iguala a idade mínima para aposentadoria das trabalhadoras e dos trabalhadores rurais.

O principal motivo pelo qual as idades são distintas atualmente é o fato de que as mulheres do campo têm uma dura jornada de trabalho não remunerada, cuidando da casa e da família, além, é claro, do trabalho com a terra.

Igualar estas idades é desprezar essa contribuição das trabalhadoras rurais e fomentar uma condição já desigual de gênero no campo.

38. A reforma proposta, ao tornar para uma parcela relevante da população quase inviável a perspectiva de se aposentar, desestimula as relações formais de trabalho, fazendo com que menos impostos e contribuições sejam arrecadados pelo governo, alimentando assim o déficit das contas públicas e jogando o país num ciclo vicioso que tende somente a crescer com o tempo.

39. Apenas em 2017 o valor total das renúncias fiscais do governo federal beirou os 300 bilhões de reais.

Deste total, mais de 150 bilhões correspondem a renúncias de contribuições sociais, que deveriam financiar a seguridade social no país.

Ao longo da última década, este valor somado ultrapassou o 1 trilhão reais.

É importante lembrar que a renúncia deveria ser a exceção e não a regra, e não faz sentido os trabalhadores serem punidos por um auxílio que é dado aos empresários e empregadores para estimular sua atividade, mas que acaba contribuindo para a visão de que existe um déficit estrutural nas contas da previdência.

40. O argumento de que os ganhos reais conferidos ao salário mínimo ao longo da última década são responsáveis pela explosão das despesas previdenciárias não se sustenta ao analisarmos os dados.

Entre 2005 e 2015 o salário mínimo cresceu quase 75% em termos reais.

No mesmo período os benefícios previdenciários passaram de 8,0% a 8,8% do PIB.

Isto porque o aumento real do salário mínimo, assim como o aumento nominal dos benefícios previdenciários, atinge a base da pirâmide social do Brasil, se refletindo em aumento do consumo e consequentemente da atividade econômica, impulsionando o PIB do país.

41. A Reforma da Previdência proposta traz o argumento que com a economia gerada o país poderá investir mais em serviços públicos de qualidade, como por exemplo na saúde.

Em primeiro lugar há a EC 95 que limita o teto de gastos das despesas primarias do governo (que não incluem o pagamento dos juros da dívida pública, que seguem sem limite) ao que foi gasto em 2016 corrigido pela inflação.

Como naturalmente as despesas com benefícios previdenciários sobem ano a ano pelo envelhecimento da população, num ritmo que nos últimos anos foi de cerca de 10% ao ano, a economia proposta não parece ser suficiente para fazer essas despesas crescerem abaixo da inflação, a ponto de permitirem realocação de despesas para outras iniciativas.

E é preciso compreender, que para os mais de 80% de idosos brasileiros que recebem os benefícios da seguridade social este é o dinheiro que garante o mínimo de condição para cuidarem de sua saúde.

Em outas palavras, ao diminuir a parcela da população com acesso a estes benefícios, o governo está na prática desinvestindo em saúde da população.

42. Desde a celebração do pacto social presente na Constituição federal de 1988, com o reconhecimento da necessidade de uma rede de proteção social para o trabalhador rural durante a velhice, o êxodo rural diminuiu consideravelmente.

Os estudos indicam que 60% dos trabalhadores que viviam no campo em 1980 continuavam a viver em 1991. Já dos que viviam no campo em 1991, 75% continuavam vivendo em 2000. E em 2010, a taxa de permanência foi de 85%.

Retirar essa rede de proteção social significa alimentar novamente este êxodo contribuindo para a pobreza e marginalidade nas grandes cidades.

43. A reforma da previdência proposta diminui a renda assegurada a uma parcela pobre da população brasileira e não altera a renda paga pelos juros da dívida pública aos mais ricos.

Um estudo do FMI mostra que ao aumentar em 1% a renda destinada aos mais pobres, o PIB tem um potencial de crescimento adicional de até 0,38% em cinco anos.

Já ao aumentar em 1% a parcela da renda que vai para os mais ricos o PIB potencialmente decresce em 0,08% em cinco anos.

A Reforma, portanto, ao contribuir para esta concentração de renda, potencializa uma desaceleração da economia do país.

44. A mudança do regime de repartição pelo regime de capitalização implica o abandono da previdência como direito social e como mecanismo de solidariedade coletiva e intergeracional.

Com isso a previdência se transforma em mais uma das inúmeras mercadorias do supermercado do sistema financeiro.

As pessoas deixam de ser cidadãos em busca e usufruindo de seus direitos de cidadania e se transformam em consumidores no mercado.


I – ANFIP – Análise da Seguridade Social em 2017.

II – O impacto do Benefício de Prestação Continuada na expectativa de vida saudável dos idosos brasileiros em 2008.

III – Comunicado nº 75, Gastos com a Política Social: alavanca para o crescimento com distribuição de renda, 03 de fevereiro de 2011.

IV – Reversing Pension Privatization: Rebuilding public pension systems in Eastern European and Latin American countries (2000-18).

* Engenheiro Civil pela PUC/RJ, estudou economia na University of California. Em 2016 foi eleito pela revista Investidor Institucional como um dos 3 melhores economistas do Brasil.

Ajudaram no texto:

Eduardo Fagnani – Graduado em Economia pela Universidade de São Paulo (1976), Mestrado em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (1985) e Doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Atualmente é professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/UNICAMP).

Paulo Kliass – Graduado em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas – SP (1985), mestrado em Economia pela Universidade de São Paulo (1988) e doutorado em economia pela UFR – Sciences Économiques – Université de Paris 10 – Nanterre (1994) e pós doutorado em economia na Université de Paris 13.

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