Voltei, Recife
Não foi a saudade que me trouxe pelo braço, conforme o frevo de Luiz Bandeira. Essa incompletude não me corrompe a alma, já que nunca morei lá. Fui visitar o comércio pujante da velha capital pernambucana, que de tão próxima a João Pessoa, depois da duplicação da BR-101 viramos subúrbio de luxo da “Veneza brasileira”. Na qualidade de “estrangeiro” na terra de Joaquim Nabuco, é preciso que eu tenha a sinceridade de afirmar que o caos urbano transformou aquela cidade em um espaço irremediavelmente arruinado. Recife hoje é uma cidade inviável. O quadro de miséria e o estado geral desordenado do trânsito e dos espaços urbanos é excepcional.
No mangue nascem, crescem e servem de alimento os mesmos crustáceos da “Geografia da Fome”, que Josué de Castro tão bem estudou sessenta anos atrás. O ciclo do caranguejo continua, agora sem muito siri, devastado pela poluição dos rios, mangues e mares. A miséria humana é quase a mesma, com exceção do advento de novas chamas infernais que atendem pelo nome de “crack”. A prostituição infantil, a violência sem nenhum controle, a degradação visual e o estado de carência absoluta da maioria de sua imensa população aumentam as negras manchas demográficas, como uma célula cancerígena incontrolável e incessante.
Rodeado por essa nuvem de horror, o Recife permanece lindo, com seus casarões, suas pontes, suas praias, sua cultura sofisticada, seus renascimentos musicais como o movimento “mangue beat”. No meio daquela inferneira, de repente você se depara com o Jardim Botânico, um encontro com a natureza mais bela e sadia, mata, trilhas, fauna e flora nativos de um dos últimos redutos da Mata Atlântica, escondidos no meio da completa desordem do trânsito da BR-232, no Curado.
E sua geografia humana? O recifense é um ser que, vivendo tão perto da Paraíba, tem sotaque diferente do nosso. Eles preservam um certo distanciamento preconceituoso do paraibano, isso é certo. A cidade do frevo, maracatu, coco, ciranda e caboclinho influenciou e muito a minha Itabaiana, que fica na fronteira entre os dois estados. Antigamente, Itabaiana vivia no ritmo do Recife. Torcíamos pelos times de lá, nosso carnaval tinha a marca de Pernambuco. O trem ligava as duas cidades e fazia esta simbiose. Mesmo porque só podíamos sintonizar as rádios Jornal do Comércio e Clube de Pernambuco.
Voltando ao Recife de hoje, passo no Pátio de São Pedro para ver seus museus, memoriais, espaços de pesquisa e preservação desde a arte popular às manifestações culturais mais modernas. Tem até um Memorial Chico Science, líder de um movimento cultural que marcou época nos anos 90 no Recife. Tem a Casa do Carnaval, tradicional ponto de encontro de carnavalescos, um dos mais ricos patrimônios imateriais de Pernambuco. É um território cultural que dá gosto. Esse é o Recife imortal, asfixiado por um sistema urbano quase insustentável. Drama comum de nossas megalópoles do terceiro mundo.
No Uber, descendo a Avenida Epitácio Pessoa na capital paraibana, notei o sotaque do motorista. Declarou-se pernambucano do Recife em missão de sobrevivência na Paraíba. Autorizado conhecedor de problemas recifenses, o motorista resumiu mais ou menos assim as peripécias diárias de quem guia nas ruas daquela cidade: os engarrafamentos não são só estressantes, eles são o próprio Leviatã, serpente marinha que perseguia os marítimos, como os “sete príncipes infernais” de que fala a Bíblia. “Os engarrafamentos vêm em ondas. Tu sai da Boa Vista no fim do dia, tudo parado. Aí consegue chegar no Derby, idem. Aí vai indo e o engarrafamento vai junto”. A infraestrutura caótica constrói esses monstros urbanos, uma hora como dragões, depois serpentes, polvos ou enormes crocodilos, feras apocalípticas que se integram no metrô lerdo, abarrotado de ambulantes, passando por estações caindo aos pedaços, terminais de integração tudo capengando e absurdamente desordenados. “Amo o Recife, mas eu não consigo mais recomendar a cidade pra ninguém, em se tratando de moradia”, desabafou o chofer.