Um ano após o mar de lama – E agora?
A lama soterrou a vida e coloriu as paisagens e os rios de alaranjado. Em 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, se transformou na maior tragédia ambiental do país. O tsunami de água e rejeitos levou 19 vidas, casas, animais, memórias. E muitas perguntas seguem sem resposta: o que fazer com a lama agora? O que pode acontecer na época de chuvas? Como estão os moradores? Veja desafios que vítimas, governos e a mineradora ainda têm de enfrentar.
Há um ano, milhões de metros cúbicos que estavam na barragem de Fundão devastaram o distrito de Bento Rodrigues, atingiram dezenas de outras localidades e cidades entre Minas Gerais e o Espírito Santo e chegaram ao mar. Reveja como foi essa tragédia.
Um ano após o rompimento da barragem de Fundão, o pó de minério ainda encobre áreas devastadas. Ao longo de rios, o alaranjado das águas encontra o cinza e o marrom dos bolsões de rejeito. Milhões e milhões de metros cúbicos da lama – agora, boa parte seca – seguem espalhados, deixando marcas no meio ambiente. E o que fazer com todo esse rejeito? Ainda não há uma solução definitiva.
Para o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), a remoção do rejeito é urgente para evitar novas tragédias e para o início efetivo da recuperação ambiental. Até agora, a Samarco só tirou 2% da lama que se acumulou entre Bento Rodrigues, o distrito mais afetado pela tragédia, e a Usina Hidrelétrica de Risoleta Neves, conhecida como Candonga.
Quando a barragem de Fundão se rompeu, liberando 43,8 milhões de metros cúbicos de rejeito, o promotor do MPMG Carlos Eduardo Ferreira Pinto imaginava que, um ano depois, o trabalho do órgão estaria focado na fiscalização das ações de recuperação. Mas a realidade é outra. “Hoje, não. A gente se encontra fiscalizando obras emergenciais, que são feitas para garantir segurança de Candonga ainda, porque a lama não foi retirada dos rios”, afirma.
No Plano de Recuperação Ambiental Integrado (Prai), entregue pela Samarco a autoridades mineiras em agosto, a mineradora estimou, de acordo com cálculos feitos em julho, que 25,7 milhões de metros cúbicos de sedimento foram depositados entre a comunidade devastada e o barramento da usina, que serviu como obstáculo, interrompendo o fluxo de parte do “mar de lama”. A Fundação Renova divulgou a estimativa de que foram removidos pouco mais de 500 mil metros cúbicos de lama, entre 5 de novembro de 2015 e 31 de outubro de 2016.
Essa fundação é a responsável pelos programas de reparação e reconstrução das áreas afetadas. Ela foi criada depois do acordo firmado entre a Samarco e os governos federal, mineiro e capixaba, mas sua homologação foi anulada pela Justiça. A mineradora e a entidade não quiseram conceder entrevista. O posicionamento veio por meio da assessoria de imprensa da fundação e da mineradora.
Segundo a Fundação Renova, a remoção de rejeitos é discutida em câmaras técnicas. “Uma matriz de decisão está sendo construída junto com os órgãos ambientais”, afirma. Segundo a entidade, paralelamente a esses debates, a Samarco vem atuando no controle de erosão, desenvolvendo trabalhos de bioengenharia e outras iniciativas para minimizar o aporte de sedimentos nos rios.
Apesar de acreditar que a retirada da lama é o melhor para a reabilitação do ecossistema e para garantia da segurança, o promotor não se mostra otimista quanto à limpeza definitiva dessas áreas. “Isso acontece muito no [campo do] meio ambiente. Você estabiliza e recupera em cima daquilo. É mais fácil, é mais cômodo, mais barato”, diz.
Dos cerca de 500 mil metros cúbicos de rejeito removidos pela Samarco até agora, 157 mil metros cúbicos saíram de Barra Longa. Conforme a Fundação Renova, parte do material está depositado em uma fazenda, a aproximadamente 1,5 quilômetro da cidade. “O local é utilizado desde janeiro deste ano e foi autorizado pelos órgãos ambientais”, diz a entidade.
Outro ponto de descarte temporário dos rejeitos é um terreno que fica no bairro Morro Vermelho, logo na entrada da cidade. Em agosto, a empresa foi multada em R$ 1 milhão pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por omitir em um documento oficial a existência desse depósito. A empresa recorreu e afirmou, na ocasião, que foi uma das soluções encontradas para restabelecer os acessos urbanos e a limpeza da cidade. Segundo a Samarco, órgãos ambientais sabiam e tinham vistoriado o local.
O secretário municipal de Administração e Meio Ambiente, Antônio Alcides, diz que a prefeitura não sabe até quando o material ficará nesse terreno, que deveria abrigar um parque de exposições. “Essa lama foi colocada no parque porque não tinha outro lugar. A previsão era de tirar em abril, no máximo”, afirma ele, completando que isso é responsabilidade da Samarco. “Eles vão ter que tirar [a lama], porque ali é o início das obras de um parque de exposição e já tem dinheiro do governo federal [cerca de R$ 350 mil] investido ali”, diz Antônio Alcides. O secretário acrescenta que a mineradora prometeu finalizar as obras, mas ele não fala em prazos.
De acordo com a Samarco, a lama foi depositada no parque exposições até janeiro. A mineradora diz que a manutenção do material no local foi discutida com o poder público e com a comunidade. A companhia afirma ainda que, para evitar o que o sedimento seja carreado para o Rio do Carmo, instalou contenções. “Foi feito uma conformação do material, plantio de hidro-semeaduras no local e aplicada uma biomanta no talude. Além disto, foi instalado um dispositivo de drenagem em toda a extensão do parque, na margem do rio”, explica.
Ainda conforme a mineradora, a pilha de rejeito será transferida para um campo de futebol ao lado do terreno, que será alteado e reformado. “O projeto do campo foi idealizado com o objetivo de conter o material, que será compactado, evitando carreamentos do material para o Rio do Carmo. A comunidade e a prefeitura foram ouvidas durante a elaboração do projeto, que já foi protocolado pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e de Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad)”, afirma a mineradora. O campo de futebol deverá ser entregue à comunidade no primeiro semestre de 2017, e o parque de exposições, em dezembro do mesmo ano.
O restante da lama removida – cerca de 380 mil metros cúbicos de rejeito – saiu de Candonga, onde, de acordo com estimativa divulgada pela própria Samarco no plano de recuperação, 10,5 milhões de metros cúbicos de rejeito se instalaram. Em julho, dragas começaram a sugar a lama, que é lançada em cinco pontos ao longo da represa. Segundo a Fundação Renova, a Samarco também comprou um terreno perto da usina e pretende levar para lá os sedimentos. Denominada Fazenda Floresta, a área está em fase de sondagens. A previsão é que comece a ser usada em janeiro de 2017.
Ainda de acordo com a fundação, a expectativa é que a dragagem atinja 1,3 milhão de metros cúbico de rejeito até julho de 2017. Mas, com a chegada do período chuvoso, o Ibama teme que mais lama chegue ao reservatório, apesar de descartar risco o de rompimento. Em um cenário pessimista, o órgão considera que outros 4 milhões de metros cúbicos de rejeito possam ser carreados para lá e que a lama possa seguir caminho pelo Rio Doce, chegando, novamente, ao mar do Espírito Santo. Para os técnicos que assessoram o MPMG, ainda não está claro o que fazer com o restante da lama.
Com tanta lama ainda espalhada e com chegada de mais uma temporada de chuva, a preocupação com a segurança aumenta, e o tempo para Samarco implementar medidas para reduzir os riscos diminui. Pesquisadores dizem que a chuva pode fazer com que uma parcela do rejeito que está às margens dos rios seja levada para dentro d’água, afetando mais uma vez a cadeia ecológica. Nas águas alaranjadas, as praias de minério estão por toda parte.
“Se isso não for retirado, em toda época de chuva, vai ter lavagem de parte do material. Parte disso vai encontrar a calha do rio e vai, de novo, gerar turbidez na água. E isso vai chegar ao oceano. (…) Você está impedindo que a recuperação se inicie. Ou, uma vez iniciada, ela vai parar sempre no ciclo chuvoso”, explica o coordenador do Instituto Prístino, Flávio Fonseca do Carmo, que assessora os trabalhos do Ministério Público.
Em Bento Rodrigues, as memórias dos antigos moradores dividem espaço com as obras para construção de mais um dique, o S4. Motivo de polêmica e de questionamentos na Justiça, a estrutura, conforme a mineradora, é fundamental para evitar um novo carreamento de rejeitos. (…) carreamento de rejeitos. Outra obra é feita na área do Complexo de Germano, onde é construída a nova barragem de Santarém. Ela fica ao lado da antiga barragem de mesmo nome, onde parou parte da lama de Fundão, e terá como finalidade conter a possível descida da lama remanescente no vale.
A professora Bernardete Domingos Atanásio, de 36 anos, mora em Barra Longa, cidade que fica a cerca de 60 quilômetros de Mariana e para onde a lama também levou destruição. Ela diz que o medo do que pode ocorrer quando a chuva chegar tem tirado seu sono.
Como os moradores, o promotor também se diz angustiado com o fim da estiagem. Ele destaca que não despreza as medidas adotadas pela Samarco para contenção da lama, mas questiona a forma como a empresa vem implementado essas ações. “Agora, isso é o mínimo que se podia esperar de alguém responsável pelo maior dano ambiental da nossa história. Então, não dá para aplaudir o que está sendo feito. Pelo contrário, tudo é feito de maneira emergencial, depois do tempo. Então, me parece que a Samarco reagiu e reage de maneira improvisada”, argumenta.
Apedido do MPMG, Flávio Fonseca do Carmo e Luciana Hiromi Yoshino Kaminoque, do Instituto Instituto Prístino, analisaram estudos sobre outros desastres ambientais, ocorridos em diversas partes do mundo. Nos casos elencados, as ações depois dos incidentes foram divididas em três fases: obras emergenciais, limpeza e recuperação ambiental. Para eles, no caso de Fundão, os trabalhos se encontram, predominantemente, na primeira etapa.
Um dos exemplos destacados pelos pesquisadores como um caso bem-sucedido é o desastre de Aznalcóllar, na região da Andaluzia, na Espanha. Em abril de 1998, uma barragem de rejeitos da mineração de ouro, mantida pela empresa sueca Boliden AB, rompeu-se, liberando material tóxico e colocando em risco o Parque Nacional e Natural de Doñana.
Segundo os biólogos, neste episódio, os rejeitos foram retirados do meio ambiente e levados para uma cava da mineradora. De acordo com uma publicação da WWF, em um ano, 7 milhões de metros cúbicos de material foram removidos e colocados na estrutura. Ainda conforme a ONG, também em 1999, outra limpeza foi feita em áreas em que concentração residual de metal ainda não havia atingido os níveis recomendáveis, e mais 1 milhão de metros cúbicos de rejeito foi transportado para a cava.
Pesquisadores buscam formas de reaproveitar o rejeito de minério. O professor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) Ricardo Fiorotti, por exemplo, estuda como transformar a lama em ferramenta de resgate social e ambiental. O pesquisador coordena um projeto que recebeu cerca de R$ 60 mil da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig). O objetivo é investigar possibilidades de reciclagem e reutilização do rejeito para produção de materiais de construção, como peças de concreto, tijolos e até tintas orgânicas.
“Vamos olhar a bacia do Rio Doce como engenheiros, em primeiro lugar, e, depois, como empreendedores, porque a gente quer descobrir se é possível transformar esse material que está depositado ao longo da bacia do Rio Doce em fonte de renda, e modificar, de verdade, a vida daquelas pessoas, que foi tão abruptamente alterada”, explica.
Apesar de o projeto de pesquisa do professor prever a remoção do rejeito de minério de locais afetados pelo desastre ambiental, ele afirma considerar mais razoável a implementação de esforços para recomposição da natureza do que a retirada total da lama. Além de citar a dificuldade de se encontrar uma solução para remoção, transporte e disposição do material, Fiorotti acredita que esse processo pode trazer ainda mais danos para as comunidades já afetadas.
“Se você tirar essa lama de lá e levar para um aterro industrial, quem vai ganhar é o dono do aterro industrial, o dono da máquina e o dono do caminhão. A população vai ganhar o quê? (…) Eles vão ficar sem nada. Eles vão ficar cinco anos sem poder usar aquela região, porque vai ter máquina trabalhando”, argumenta. Para o professor, mais eficaz seria se o valor necessário para a retirada de toda a lama fosse reinvestido nas localidades.
De acordo com a Fundação Renova, entre as opções de manejo do rejeito, estão a remoção ou a conformação e tratamento do material no próprio local. “A escolha da melhor forma de recuperação ambiental deve levar em conta os impactos das atividades e a eficácia das mesmas para se obter os resultados desejados”, diz a entidade.
Nos pontos em que houver remoção, a intenção da fundação é adotar metodologia semelhante à escolhida para Barra Longa e Candonga, dispondo o material “definitivamente em depósitos preparados para este fim, contendo todos os controles ambientais e prevendo seu uso alternativo futuro”. Para a área de Bento Rodrigues, a retirada de 1 milhão de metros cúbicos de rejeito já está prevista. Os coordenadores do Instituto Prístino dizem que o discurso ainda está distante do que é visto na prática. “Eles têm que buscar uma alternativa, ou melhor, uma solução definitiva. Nós não temos a resposta”, diz a bióloga Luciana Kaminoque.
G1