TOCA DO LEÃO

Última crônica do ano

Se não tenho certeza, pelo menos uma probabilidade lógica: lá se vai o homem, imortal no tempo que convencionou e no qual se ajusta como pode. A criatura primitiva trabalhava com 700 centímetros de caixa craniana. Hoje, nós modernos acomodamos nosso cérebro em uma caixinha de 1.200 centímetros cúbicos e ainda assim não concebemos o começo, meio e fim. Não sabemos se fazemos parte de um plano geral arquitetado por um deus ou se somos apenas uma insignificante granulação de energia. De qualquer forma somos imortais, com essa dinâmica toda de saber que vamos morrer. E lá se vai o homem, deixando na lembrança e na esperança sua perpetuidade.

Heráclito: “você não molhará duas vezes os pés no mesmo rio”. Eu, que sou avesso às águas turbulentas de qualquer riacho, diria: “você não molhará os pés nem mesmo uma só vez no mesmo rio”. O fato é que esse ano de 2019 se arroga o direito de ter sido um ano cabra safado acima da média.

Vou esperar 2020 mangando dessas convenções, mas fatigado por causa de 2019 e sem querer culpar ninguém porque não fui bem em algumas provas desse circuito. Azares do jogo. “Julgarás a ti mesmo – disse o Rei ao Pequeno Príncipe – É bem mais difícil, mas, se o fizeres bem, então serás verdadeiramente um sábio”.

No meu julgamento, fui achado culpado por omissões e algumas ações canalhas. Como pregador da “verdade”, admiti dogmas e quis empurrar essas minhas crenças nas pessoas, ao mesmo tempo em que falava mal dos neopentecostais e sua violenta ação midiática e de resultados. Vou em frente, querendo agir menos calhordamente. Nenhum julgamento é definitivo. Como produto final de mutações de milhões de séculos, você está sempre em fase de teste.

Nessas microevoluções, você nem nota que amadurece ou apodrece. Meu único desejo para 2020: que meu cérebro viciado nos mesmos movimentos racionais não me obrigue a suportar uma sociedade injusta, por achar inútil protestar. Quero ser coautor da morte de 2019, um ano calhorda, e, em última análise, criar 2020 segundo a imagem e semelhança de um macaco em formação, condicionado por mecanismos bioquímicos, mas com uma ligeira perspectiva do eterno.

Deprê de dezembro é uma história antiga que cai sempre em dezembro. Cada um tem uma teoria própria sobre o fenômeno. É a tal depressão de fim de ano. O cara descobre que o ano passou e ele abre seu diário, só vê folhas em branco. Nada produziu. Adormeceu em janeiro e acordou em dezembro. Vagou sem rumo e sem saber o que fazia nessa vida besta durante doze meses. O bom senso manda calar sobre essas coisas para evitar duas vergonhas: a constatação da perda do ano e o prazer malévolo dos inimigos.

Eu, na qualidade de exigente crítico de mim mesmo, faço a descrição dos meus infortúnios e pequenas vitórias de Pirro.

Quantas preocupações neste ano que passou! Já dizia o velho Mateus: “não se preocupe com o que comer e beber, nem com o próprio corpo. Não é a vida mais importante que essas coisinhas?” Talvez um chato teria dito a Mateus: “e sem comida, como ter vida, seu zé ruela?” Longe de mim criticar os santos homens de Deus. Mas isso foi há muito tempo, antes de Bolsonaro e seus demônios amestrados. No congresso faltou quórum, no palácio faltou decoro e na mesa de Natal do proletário faltou couro de galinha, o famoso bolo de colesterol. Digo isso de passagem, pra politizar levemente meu relatório. É cada vez inacreditável a realidade desse lugar. E olhe bem e atente: quando o sujeito não acredita na realidade, ele perde a indignação social. Vira um indignado antissocial e esquizofrênico. Daí ele escreve no Facebook: “Somos todos Bolsonaro”.

De qualquer forma, o Comendador Fábio Mozart se despede dos seus cinco ou seis leitores da Toca, lamentando o ano safado de 2019 e querendo que 2020 seja o ano em que os bandidos morram. Sim, porque no fim todos os bandidos morrem. No meu caso, repito Millôr Fernandes: “Se eu morrer, nem ligo; enfim, estarei fora de perigo.”

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Fábio Mozart

Fábio Mozart transita por várias artes. No jornalismo, fundou em 1970 o “Jornal Alvorada” em Itabaiana, com o slogan: “Aqui vendem-se espaço, não ideias”. Depois de prisões e processos por contestar o status quo vigente no regime de exceção, ainda fundou os jornais “Folha de Sapé”, “O Monitor Maçônico” e “Tribuna do Vale”, este último que circulou em 12 cidades do Vale do Paraíba. Autor teatral, militante do movimento de rádios livres e comunitária, poeta e cronista. Atualmente assina coluna no jornal “A União” e ancora de programa semanal na Rádio Tabajara da Paraíba.

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