Seu deus não é o meu deus? Aí meu deus!
Renato Russo escreveu, “a humanidade é desumana, o sol nasce pra todos, só não sabe quem não quer”. A frase tem uma finalidade específica quando aplicada a fatos contemporâneos. E aqui, aponto dois fatos que se complementam em um país tomado por um fundamentalismo religioso opressor, representado, invariavelmente, por “gente de bem cristã”. Não importa a denominação, aliás, não faz a menor diferença quando o indivíduo está cego por preceitos atrasados e/ou irreais.
Me lembrei de um filme que vi na juventude, ERIK, O VIKING, filme de 1989 de Terry Jones (Monty Python) com Tim Robbins como o jovem Erik. A ideia de Terry foi contar a visão de quem não tem a mesma crença que o outro. No caso, Erik era um cético, não acreditava nos mitos nórdicos. E na busca pela “trombeta ressonante” que os levaria até os deuses, Erik mostra sua absoluta descrença, enquanto seus companheiros vivem as aventuras de encontrar todas as criaturas míticas da cultura viking, ou nórdica. Eles viam o que Erik não via. E não viam o que Erik via. Uma comédia maravilhosa que hoje expressa bem a postura impositiva do fundamentalismo.
Vamos aos fatos. Mas antes um esclarecimento, tal qual Erik, não acredito em religiões, mas minha formação me faz respeitar todas as expressões religiosas e seus devotos. O primeiro fato se deu na “marcha pra jesus”, no último sábado, quando o prefeito Cicero Lucena, em uma cena constrangedora entre louvores, aleluias e “chabalabalas”, entrega a chave da cidade a Jesus. A cena seria absolutamente normal em um templo ou igreja onde as pessoas devem professar sua fé. Mas quem estava lá, em um evento religioso, com apoio do poder público, era o prefeito como prefeito. O prefeito falando pela cidade apartir da sua crença. Se o prefeito representa o povo, como pode falar pela fé do outro. Jesus será sempre bem vindo nas casas e nos corações das pessoas. O estado é laico, não nos esqueçamos. Mesmo assim a referida “marcha pra jesus” foi decretada como patrimônio imaterial da Paraíba e de João Pessoa. Na ALPB, Walber Virgílio, o truculento, foi o autor, já na Câmara, foi o vereador Bispo Luiz, que nunca ouvi falar.
O outro fato é ainda pior, se é que é possível. O vereador, que se intitula como direita conservadora, Tarcísio Jardim (PP), apresentou um projeto de lei que, pasmem, proíbe crianças de participarem da “parada lgbtqia+” ou parada gay, como ficou conhecida. E o pior, piora! Essa matéria foi aprovada com apenas UM voto contrário, Marcos Henriques (PT), na Câmara de João Pessoa. Segundo o autor, com seu “malabarismo verbal tosco”, a parada gay agride as “famílias tradicionais”. Além de virarmos chacota nacional, o projeto é claramente inconstitucional. Claramente abusivo. Claramente desrespeita o indivíduo no seu direito de ir e vir, além de retirar dos pais o direito de criar os próprios filhos. Sim, o autor dessa peça é o mesmo que disse que as mulheres eram culpadas por agressões de seus companheiros. Percebeu o nível “fundamentalismo hard”?
Os dois fatos aqui expostos representam os lados de uma mesma moeda. A moeda dos vendilhões do templo, aqueles mesmos expulsos por jesus por lucrarem com a fé. Os dois fatos andam de mãos dadas desde que essa onda fundamentalista e conservadora se revelou no país, em especial no governo de um falso messias. O empoderamento dessa “gente de bem cristã” não veio do nada. Veio de um relação direta entre política e religião. Templos viraram palanques eleitorais eficientes, com votos garantidos. O resultado? Legislativos cheios desse conservadorismo “a lá 1817”. Atrasados, violentos e intolerantes, este é o perfil médio dessa “gente de bem cristã”. Basta assistir meia hora de TV da Câmara e do Senado para perceber semelhantes dessas teses invasivas e intolerantes.
O estado é laico e precisar voltar a ser laico. As religiões devem ser professadas por quem acredita nelas de forma reservada, pessoal. Se é possivel dar a chave pra Jesus, devemos dar também para outros deuses e divindades de outras denominações. O poder público deve dar o mesmo apoio material. Os parlamentos não podem legislar segundo dogmas, crenças e outras teses pitorescas de quem que seja. Mas é o que vemos. Depois da leitura da bíblia antes das sessões, os conservadores se enchem de fé pra perseguir quem não professa fé alguma. A contradição e a hipocrisia são características marcantes desses legisladores da famigerada “pauta de costumes”.
E antes que alguém grite que isso é “cristofobia”, assim como defender cessar fogo na Palestina virou “antissemitismo”, digo que se trata de direitos e garantias individuais definidos na Constituição. Lá, se garante o direito a religião, e tá tudo certo, mas também assegura os direitos de “Erik”, ou seja, o meu direito e de todos os que tenham uma posição religiosa diferente. A fé é importante pro indivíduo. A fé é importante pra aprendermos sobre compaixão, empatia, respeito, liberdades, tolerância e o principal, o amor ao próximo. Vimos “gente de bem cristã” vestidas de verde amarelo gritando “deus, patria e familia” e atacando a democracia e as liberdades individuais e defendendo armas e o extermínio de pretos e pobres. Pelo andar da “carruagem cristã”, o neopentecostalismo se acostou ao neofascismo com um “glória a deuxx” do pastor e um amém cego dos fiéis.
Renato Russo tem razão, a humanidade se mostra desumana quando se vale da palavra de Deus pra negar o bem, ou direito, mais importante que ele nos deu, o livre arbítrio. Se eu que não tenho religião aprendi isso, porque os fundamentalistas “gente de bem cristã” não entendem essa parte?
Por Ulisses Barbosa