TOCA DO LEÃO

Reminiscências de Timbaúba

Mil novecentos e cinquenta e cinco. Já que nasci, fui cuidar da vida. Sem um grama de paixão e fé religiosa dentro da pequena alma recém-nascida, tive minha primeira treta espiritual aos dois meses de idade. Nesse instante entra em cena o frade capuchinho Frei Damião, em missão piedosa na cidade Timbaúba dos Mocós. Esse homem veio da Itália para fanatizar os católicos nordestinos, praticantes de uma devoção medieval e propensos a santificar qualquer beato aloucado pelos dogmas da Igreja. Vestido com a armadura moral da religião dominante, o então jovem Frei Damião aconselhava aos fiéis a não prevaricar, não viver amancebado, não beber nem fumar, não cobiçar a mulher do próximo e não ter relações de qualquer espécie com os “nova-seitas”, os evangélicos. Sua indignação contra os crentes me pegou na fase de fim da amamentação e começo de subsistência à base de papa de leite com farinha de roça. Acontece que o leiteiro foi orientado pelo Frei Damião para não vender nada aos “nova-seitas”, e minha mãe era congregada na Igreja Batista. O pobre homem não carregava dentro de si nenhum traço de rancor e repulsa contra nossa família ou quem quer que seja. Foi ensinado a odiar. A implicância do capuchinho com os crentes me deixou desnutrido. Precisou meu pai dar parte na delegacia e o sargento delegado submeter o leiteiro à tortura da alma que foi desobedecer ao Frei Damião.

 

Meu pai era adepto do socialismo, tipógrafo, redator do “Timbaúba Jornal”, boêmio e juiz de futebol. Cometia alguns poemas e acreditava nas sociedades democráticas. Livre pensador, acho que era. Cresci aspirando o cheiro da tinta de impressão e correndo das baratas tontas que saíam dos montes de papeis na gráfica. Assimilei letramento nas caixetas dos tipos móveis. Aos oito anos era ajudante de tipografia, lavando as chapas de chumbo e varrendo o salão. Foi ali onde aprendi a decodificar os sinais gráficos e comecei a entender que nesse mundo se vive uma guerra, um eterno confronto, a chamada luta de classes. Boa, justa, ética ou criteriosa, definitivamente, não era essa treta. O patrão, de bons modos e condescendente, obrigava meu pai a trabalhar doze horas por dia e a passar noites nos “serões” para dar conta das encomendas. Poucos ajudantes, incluindo minha mão de obra semiescrava e infantil.

 

Nos meus primeiros anos de vida desenvolvi meu gosto pelo carnaval. Sou conterrâneo do maestro Zumba, o rei do frevo. Zumba foi considerado, ao lado de Capiba e Nelson Ferreira, um dos maiores compositores do frevo pernambucano, pelo sociólogo Gilberto Freire. Para o maestro Guerra Peixe, foi um dos maiores instrumentistas do meu Pernambuco de tantas notas e tantos geniais musicistas. Pequenininho, eu saía no quadro da bicicleta Phillips ano 1950 do tipógrafo Djalma Aguiar, com meu irmão mais velho no bagageiro, nos dias de carnaval.

Adorava aquela festa anárquica e de tantos signos culturais. Chapeuzinho de palha com a fita onde se imprimia uma chacota, bisnaga d’água, a gente rodava atrás da banda Pé de Cará tocando os frevos de Zumba, seguindo os grupos de boi e blocos endoidecidos na farra do folguedo. Cresci amando o carnaval. Um dos empregados da tipografia confraternizava com a morte todo ano em sua Lambretta vermelha. Amarrava nas costas um cartaz: “Treinando para morrer”. Sua meta principal era a prática do malabarismo em duas rodas. Eu ficava encantado com a insistência daquele homem em tentar o suicídio em público, no meio do delírio da folia. Imagens inapagáveis.

Libertinos, bêbados, moças assanhadas, tarados correndo atrás das burrinhas do Boi de Reis, lindas pastoras com seus cantos lascivos e o homem da Lambretta exercitando-se para a morte. Que sentido pode haver diante dessa loucura? No fundo, era arte em seu estado puro. Arte como imitação da vida que imitava os sonhos. Estética do pandemônio. Política da miscelânea de anarquia. Foi meu guia introdutório para os pensamentos sobre o que é essa aventura na terra que eu começava a sustentar com minhas pernas finas e meus recalques vinculados ao mundo cão que ainda iria conhecer. Por enquanto, exercia a penosa e encantadora função de ser menino pobre descobrindo os troços do mundo.

Fábio Mozart

Fábio Mozart transita por várias artes. No jornalismo, fundou em 1970 o “Jornal Alvorada” em Itabaiana, com o slogan: “Aqui vendem-se espaço, não ideias”. Depois de prisões e processos por contestar o status quo vigente no regime de exceção, ainda fundou os jornais “Folha de Sapé”, “O Monitor Maçônico” e “Tribuna do Vale”, este último que circulou em 12 cidades do Vale do Paraíba. Autor teatral, militante do movimento de rádios livres e comunitária, poeta e cronista. Atualmente assina coluna no jornal “A União” e ancora de programa semanal na Rádio Tabajara da Paraíba.

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