TOCA DO LEÃO

Recordações da Rua das Flores e adjacências

O jovem professor itabaianense Flaviano Batista cultiva o excelente hábito de estudar e registrar a história de sua comunidade, buscando dar luz a fatos e pessoas escondidos no escuro de alguma gaveta ou cérebro bolorento. Sente a urgência de salvar informações extraídas das mentes de velhos como eu, ameaçados pelo Alzheimer ou apagamentos naturais de memória, após muitos janeiros desgastantes, prestes a “queimar o fusível”. Agora ele estuda um dos redutos da boemia da velha Itabaiana, nas confluências da Rua 13 de Maio e Rua das Flores, famosas pelos seus lupanares e endereços de tipos afamados. Na certidão lavrada no cartório do prazer, consta que o eterno Valdo Enxuto entrou na pensão da “madrinha” Nevinha Rica em 1958 e só saiu quando casou, na década de 1960. Valdo foi o primeiro entrevistado para a dissertação do professor. São entrevistas semiestruturadas, conforme adiantou o historiador. O que vem a ser uma conversa semiestruturada? Ele explica que a entrevista semiestruturada é um roteiro de perguntas previamente estabelecidas, mas que admite esticar o assunto, conforme a disposição e a riqueza das reminiscências do interrogado. Considerando que Valdo Enxuto é daquela espécie que, quando rola uma conexão boa e pessoa interessada em ouvir, o papo se estende sem prazo pra acabar, a entrevista com o professor deve perdurar por dois dias e duas noites, no mínimo.

No meu caso, sobre os distantes eventos da Rua do Carretel, como é conhecida, sei de algumas histórias dos velhos cabarés, essa necessidade de todos os tempos. Quando criança, vivi na casa de minha vó Joaninha, na Rua Santa Cecília, onde um riacho delimita com a Rua das Flores. No final da rua pontificava o bar Recreio das Mariposas, uma espécie de central das raparigas, com sua corneta de som tocando Valdick Soriano e outras sofrências da zona do meretrício. Nas noites de segunda-feira, véspera da grande feira de gado de Itabaiana, armava-se o famoso pastoril de Chico do Doce. Depois, entravam em cena o babau do mestre Chico e os ensaios da tribo “Assombrados da floresta”, do mestre Josa dos Índios e o boi de Especiá para o carnaval. As noites terminavam com o coco de roda do mestre Zé Quarenta e Um. Para uma criança, os espetáculos da cultura popular que se apresentavam nas ruas das Flores e na 13 de Maio foram essenciais para acender e manter até hoje a chama da brasilidade e sua diversidade cultural.

No tocante ao “cai pedaço”, como diria um famoso e mal-educado capitão, as tradições orais registram que o velho Mozart e seu grupo de amigos realmente frequentaram e interagiram com as casas de tolerância, que não eram tão tolerantes assim, principalmente com quem se esquecia de pagar o michê. O meu livro “A voz de Itabaiana e outras vozes” destaca detalhes da vida noturna em ambientes como o cabaré do Topada, a pensão de Julieta, o bar de Zé Buchada onde Nelson Gonçalves tocou uma noite inteira nos anos sessenta, o forró de Luiz da Gata, a gafieira de Nevinha Pobre, o importante e esnobe bar de Nevinha Rica, reduto da elite itabaianense, e outros lupanares já extintos, como apagados foram da memória da cidade os prédios históricos dos velhos puteiros. A própria atividade das profissionais da luxúria ainda existe, mas transformada. Consta que a famosa Madame Satã, quando ainda não era célebre, começou sua carreira de cozinheira e transformista nos bordéis de Itabaiana. A 13 de Maio ficava entupida de gente nas noites de segunda-feira. Resultado: Itabaiana foi o centro irradiador da maior onda de sífilis e gonorréia já registrada na região.

Para os de minha geração, cabaré nunca foi lugar somente de libidinagem. Pergunte a Valdo Enxuto, e ele dirá que o prostíbulo foi sua maior escola de vida, uma instituição social. Os cordelistas da Academia de Cordel do Vale do Paraíba elaboraram um projeto para tombamento da Rua Treze de Maio, a famosa Rua do Carretel, onde funcionou o maior puteiro do Nordeste, nos anos 50/60/70. O grupo chegou a escrever um cordel coletivo para a campanha com o mote:

Se essa rua fosse minha

Eu mandava preservar

Fábio Mozart

Fábio Mozart transita por várias artes. No jornalismo, fundou em 1970 o “Jornal Alvorada” em Itabaiana, com o slogan: “Aqui vendem-se espaço, não ideias”. Depois de prisões e processos por contestar o status quo vigente no regime de exceção, ainda fundou os jornais “Folha de Sapé”, “O Monitor Maçônico” e “Tribuna do Vale”, este último que circulou em 12 cidades do Vale do Paraíba. Autor teatral, militante do movimento de rádios livres e comunitária, poeta e cronista. Atualmente assina coluna no jornal “A União” e ancora de programa semanal na Rádio Tabajara da Paraíba.

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