Primeiro livro do ano
“O enxadeco de juá” foi o primeiro livro que li em 2025. Novela assinada pelo meu confrade Wolhfagon Costa, de Solânea, com 110 páginas lidas em menos de duas horas. Quando você devora um livro de um fôlego só, como se diz, é sinal de que o produto é opulento e substancioso. Estilo seco, direto, sem firulas, conta a história de um pai assassinado e o desejo de vingança do filho. “A novela apresenta realidade dos que labutam a terra naquelas paragens, sertão paraibano na divisa com os três estados: Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará”, explica o autor na apresentação.
Para se escrever uma boa novela ou romance, não basta entender de redação criativa e ter um bom enredo. Há que se introduzir no processo de criação uma pitada daquela coisa que está no subconsciente e interfere nos domínios da inteligência, suficiente para dar originalidade a um livro que, afinal, não é uma coisa morta. Existe em toda boa obra literária um poder de vida que cativa o leitor.
Estou aqui nesse começo de ano para confessar na maior sinceridade que comecei a ler “O enxadeco de juá” com um pé atrás, aquele pé que ainda não conseguiu se libertar de velhos complexos coloniais a partir da elitização do saber. Escritor novato, vindo do interior do Nordeste, aventurando-se na seara complexa da ficção, já carrega certo estigma no campo intelectual. De certa forma se dita um padrão de gosto compartilhado por essa elite que marginaliza, por exemplo, a poesia popular, arte destacada na novela de Wolhfagon Costa. Intelectuais orgânicos do Sistema dizem o que é bom ou ruim em termos artísticos, tomando como base seus próprios parâmetros. Depois de vinte páginas lidas, ao entrar no universo de Valdemar Cazé, o Demar de Zuca Cazé, Belízio Ayres, Zeca Flor, Joana Maria, Antonio Gago e Zezé do Caminhão, o leitor é cooptado pelo discurso narrativo. O autor está no controle, ainda que dentro do padrão estético condizente com o sistema institucionalizado da criação literária. Ele não tensiona estruturalmente sua narrativa, não se permite a presunção da liberdade de criar novas formas de dizer as coisas, vide Guimarães Rosa. Apenas conta uma história que ouviu numa bodega, guardou na memória e reproduz com seus arranjos literários. O livro exercendo sua função prática de entreter, sem a idiotização da cultura de massa.
Na cidade de Solânea, terra de Wolhfagon Costa, o que não falta é escritor. Um deles é José Francisco de Araújo, que já escreveu mais de cem livros, de teatro, contos e literatura infantil. Zui, como é mais conhecido, prepara o lançamento de nova obra. Ele tem uma loja onde expõe a produção dos escritores locais. Como sou morador da cidade, tenho reservado um lugar nas prateleiras da livraria do Zui. O profuso escritor não envereda pelos caminhos da poesia. Não consta, entretanto, que partilhe da imagem que tem o pensador americano H. L. Mencken sobre quem escreve poesia: “Um poeta adulto é apenas um indivíduo em estado de retardamento mental – em suma, um mentecapto. Um homem de cinquenta anos que escreve poesia é um bufão que finge ser aquilo que não é”.
Escrever copiosamente, publicar três ou quatro livros por ano, devotar-se diariamente ao ofício da literatura, sendo editor, revisor e divulgador dos seus livros, não é tarefa de um homem comum. Zui tem pouco reconhecimento público. No Brasil, o escritor José Carlos Ryoki de Alpoim Inoue tem 78 anos e já escreveu mais de mil livros de bolso, aqueles livrinhos de faroeste que vendiam em bancas de jornais. Foi premiado pelo Guiness Book of Records como o escritor mais prolífico do mundo. Ryoki escrevia um livro em apenas um dia. Zui, no entanto, dá volume aos seus escritos. Ele tem livros com mais de 500 páginas. José Carlos Ryoki escrevia brochuras de faroeste. Vendia milhares de cópias. Um dia, aventurou-se no mundo do romance e escreveu “Vencendo o desafio de escrever um romance”. Foi um fracasso de vendas. Voltou aos livrinhos de bolso em escala industrial.
Naturalmente, os livros dos autores de Solânea estão em local privilegiado na Biblioteca Pública Padre José Fidélis, de onde sou cliente. Nos quatro anos que frequento essa biblioteca, só encontrei presumíveis leitores uma só vez. Quatro rapazes sentados nas mesas, olhando seus respectivos celulares, sem nenhum livro por perto!