TOCA DO LEÃO

Pequenos contos de horror e de solidariedade

Toca do Leão

Arte Sérgio Ricardo

Ainda existem pessoas caridosas. Foi assim: caí na rua, cortei a mão e torci o joelho. Um motorista de táxi comprou garrafinha de água e me deu para lavar o sangramento e tomar uns goles, passar o nervosismo. Depois, uma senhora de ar humilde me pegou pelo braço e me levou para o hospital.

No caminho, outro motorista ficou impressionado com o sangue que jorrava da minha mão, parou o carro e me deu uma toalhinha para fazer torniquete. No hospital, fiquei na emergência esperando o doutor. Ali não encontrei muita solidariedade. Os enfermeiros duros, insensíveis. O ambiente com alta voltagem de desumanidade e destrato com pessoas pobres.

A mulherzinha tirou meu relógio, lavou meu braço na pia imunda da sala de emergência e disse que iria esperar. “Precisa não, a senhora já me fez uma grande caridade, eu me viro”. Esperou ainda uns trinta minutos. Disse que vinha do Valentina, estava procurando um setor para arrumar remédio de graça para o marido doente. Foi embora, mas ligou para meu celular cujo número pegou na recepção.

‒ É da casa do seu Fábio?

E eu:

‒ É, sim.

‒ Olhe, tou ligando do hospital, ele teve um acidente e tá aqui na emergência.

‒ Tá bem, obrigado.

Voltou para me certificar de que meus familiares estavam a caminho. Achei comovente tanta bondade. Nem perguntei o nome da senhora. O celular era da recepcionista.

Depois de muito tempo, eu já com vontade de me mandar daquela porcaria de hospital, chega o doutor. Era o Mestre Maçom Guilherme Sarinho, amigo do meu pai, também da maçonaria lá em Sapé. Mandou tomar antitetânica e antibiótico. Não deu pontos no talho por falta de material cirúrgico.

Gostaria de reencontrar aquela mulher que se importou com o sofrimento de um estranho na rua, demonstrando empatia verdadeira, de maneira amorosa e misericordiosa. Ela, uma desvalida, vista com inferioridade por muitos, como proscrito e renegado ao segundo plano é todo pobre nesse mundo injusto.

Existem essas pessoas que cruzam nosso caminho, ficam só um tempinho de nada e já seguem para outras paragens, mas marcam definitivamente. Pois se um dia eu conseguisse fazer uma lista justa das pessoas que valeram a pena conhecer, a mulherzinha do Valentina iria para as cabeças. Pessoa maravilhosa. Quis a vida que nos encontrássemos em um momento tumultuado. Seria o tal anjo da guarda de que falava minha professora de catecismo, há séculos passados? Pelo sim ou pelo não, vai uma flor vermelha para essa senhora do subúrbio, que me reconheceu como semelhante e me deu a mão na hora da dor.

Eu quis contar essa historinha de tormento pessoal para ilustrar outra narrativa, situação hospitalar onde estive envolvido há alguns dias. Era um exame desses meio desassossegadores, invasivos e altamente desagradáveis. Após sair do torpor da anestesia, vi-me cercado de anjos atenciosos e dedicados. As enfermeiras e técnicas reduziram a suas justas proporções os padecimentos e espantos do paciente com brandura e delicadeza.

É sabido que os profissionais da saúde devem dar ao paciente um atendimento humano, atencioso e respeitoso. Faz parte do seu código de ética. Mas, e sempre tem um porém, a realidade nem sempre é assim, principalmente em hospitais públicos. Dia desses ouvi de uma médica este conto de horror: paciente baleado chega a um grande hospital em João Pessoa. A equipe médica não faz os procedimentos de rotina nesses casos. O rapaz é um doente preferencial para morrer, como de fato veio a finar-se. A jovem médica, indagando dos colegas quais os motivos do descaso, soube que a vítima era o que eles chamam de AS, ou “alma sebosa”. Os classificados nessa categoria são pretos, jovens, tatuados, mal vestidos e usando uma sunga. Por que a sunga é sinal de “alma sebosa”? Porque eles, os pretensos marginais, só saem de casa com essa indumentária, que é para não ficarem nus quando forem presos.

Saúde e sociedade precisam ter um encontro marcado, é verdade. Esse debatimento, no entanto, é para outra ocasião. Hoje, quero reconhecer o trabalho da enfermeira Tatiana, as técnicas Ana, Cláudia e Neide, os médicos Marcelo e Adriana que me acolheram como enfermo e generosamente trataram-me com dignidade e carinho. Gratidão.

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Fábio Mozart

Fábio Mozart transita por várias artes. No jornalismo, fundou em 1970 o “Jornal Alvorada” em Itabaiana, com o slogan: “Aqui vendem-se espaço, não ideias”. Depois de prisões e processos por contestar o status quo vigente no regime de exceção, ainda fundou os jornais “Folha de Sapé”, “O Monitor Maçônico” e “Tribuna do Vale”, este último que circulou em 12 cidades do Vale do Paraíba. Autor teatral, militante do movimento de rádios livres e comunitária, poeta e cronista. Atualmente assina coluna no jornal “A União” e ancora de programa semanal na Rádio Tabajara da Paraíba.

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