O riso e a miséria
Na gangorra do país em que vivemos e no afã de notícias desacertáveis em que quica o jornalismo nacional, uma nova efeméride nos assalta a cada minuto. Uma das últimas foi que agora é permitido sorri na foto da CNH, e como no Brasil as coisas acontecem, ou melhor, se precipitam às tontas, de pronto surgiu uma campanha nacional para que todos façam a tal foto rindo. É sempre assim, neste país de muito riso e pouco siso, ninguém pode destoar da maioria. Antes era proibido rir, todo mundo com cara frechada, soturna, de preferência; agora, o mesmo órgão governamental, que antes proibia, encampa um movimento para todos abrirem os destes! Estranho, não?
Essa xaropada toda aconteceu, quando o mineiro Filipe de Oliveira Borges foi tirar sua carteira de condutor e queria sair na foto contentinho, o que só conseguiu depois de muita insistência e assinar um termo de responsabilidade pelo tal ato. Depois disso, ele compartilhou nas redes sociais, como um desabafo sobre esta questão, e um monte de pessoas, que se acha bem pensante, fez uma enxurrada de crítica na internet a seu post, e só por isso o DETRAN liberou e tanto liberou que agora incentiva a outros neocondutores a fazerem o mesmo.
A pergunta que não cala é: por que o brasileiro apesar de tudo insiste em mostrar os dentes? Eu não sei, tenho algumas ideias sobre, mas sei que não corresponde à realidade profunda do brasileiro, ou seja, não há razões plausíveis para isso. Segundo o próprio Filipe, seu pai, que é dentista, diz que temos 32 motivos para sorrir… Eu pergunto: do jeito que tratamento dentário de qualidade no Brasil é caro e supondo que seu pai seja competente e renomado, será que os pacientes riem tanto na hora de abrir a carteira para pagar a alta conta?
E mais rir é bom sim, mas tudo tem de ter um motivo e não concordo que o brasileiro tenha tantos motivos assim para rir. Diz Frejat, na música Amor pra recomeçar: “E que você descubra que rir é bom/ mas rir de tudo é desespero//”. Coisa com que concordo. Pois para rir de verdade há de se ter motivo, bom propósito e contexto. Já imaginou alguém contando piadas e outros rindo num velório?
Tudo tem de ter (e tem) uma razão de ser. Teria o brasileiro tantos motivos assim para rir? Um povo que tem vergonha de si mesmo (embora não assuma), pois está sempre imitando o europeu e o estadunidense; quem está contente consigo não macaqueia os outros. Um povo que em sua grande maioria é analfabeto, (mesmo muitos diplomados o são); que ganha um salário irrisório, viaja em ônibus lotados e em pé, paga as maiores taxas de imposto do mundo e tem retorno perto de zero em serviços públicos, passa mal, grande parte vive na miséria, outra parte passa fome para ostentar: “Na garagem um carro novo/ e na cozinha um ovo”. (assim se diz em Pernambuco), assaltado em cada esquina, morrendo à míngua ou nas portas dos hospitais, violentado de todas as formas e a todo momento pelos governantes e pela elite que parasita o poder político. Numa sociedade em que praticamente só há exploradores e explorados sinceramente não vejo motivo para rir o tempo inteiro, mesmo que queira.
Ademais esse riso fácil custa-lhe muito caro. O brasileiro não é levado a sério pelos estrangeiros (nem lá fora nem aqui), que aqui chegam, os brasileiros abrem-lhes as portas, e eles fazem o que querem: como roubarem o que querem. Depois de roubarem o pau-brasil, o ouro, os outros minérios, elementos da fauna e da flora, o último roubo que causou espécie e indignação em alguns, foi a rapadura que os alemães malandramente patentearam. Gente, isso é pior do que defraudar uma criança ou um inválido, não que de fato sejamos isso, mas vejamos: um povo que estudou, tem dinheiro à vontade, chega ao Brasil vai para o sertão, lá o povo pobre e de boa-fé lhe abre a porta, e estes forasteiros lhes roubam a propriedade oficial do produto que secularmente e às duras penas serve-lhe para matar a fome, isso é aviltante, desce ao mais baixo patamar humano: a covardia traiçoeira. Mas os alemães não vão roubar assim “de boa” os ingleses, os estadunidenses, vão? Porque esses são povos que não riem também e sempre desconfiam do outro e sempre estão preparados para se defender do gatuno e agressor, que foi só o que a Europa produziu. No livro A arte de furtar de um manuscrito de autor português desconhecido, de século XVII, o autor demonstra e enumera técnicas e formas do roubo que Portugal produziu lá e espalhou a prática pelas suas colônias.
Também por causa do sorriso fácil a mulher brasileira é conhecida na Europa e Estados Unidos e Austrália, etc., como p… e os homens como malandros preguiçosos. Eles (os do hemisfério Norte) também riem, mas quando têm o controle das coisas nas mãos (eu bem os conheço). Então, podemos rir sim, quando tivermos um bom motivo e quando o outro nosso interlocutor merecer nosso riso, ou mesmo rir de uma situação cômica e que esse riso nos fará bem; porque, caro leitor, às vezes, devemos rir da própria vida e de nós mesmos para que o viver se nos torne mais leve…
Outra coisa, estar sério não significa ser carrancudo, fechado, misântropo; ou estar triste, soturno, infeliz, claro que não. É que há momentos que pedem seriedade, gravidade, ou concentração, atenção, entenda como quiser; mas o ser humano tem de ler os momentos e as situações e agir de acordo com o contexto, a bem da vida. Como os antigos diziam: “tudo demais é veneno”, o riso também! E o velho Aristóteles prescrevia: “virtus in media res”. Vale ressaltar que rir não é sinônimo de simpatia, nem de alegria nem de felicidade, muita gente uso do riso como uma forma de agressão ou ironia. Como diria o Gonzaguinha “Com o tempo ruim/ todo mundo também dá bom dia!”
Para finalizar, pergunto ainda: como vamos ficar rindo ao vento com o mundo caindo sobre nossa cabeça: com um usurpador impostor e cínico no cargo maior do país, ele que tramou, traiu e ajudou a dar um golpe de Estado, e descaradamente diz na televisão que foi Deus que o pôs ali. Como podemos rir a cada minuto, se temos um sistema político corrupto ao extremo, em que o único objetivo da grande maioria dos políticos é rapinar o trabalho da sociedade, entregar os trabalhadores aos ferozes tubarões que são os patrões, ser corrutos ao máximo e roubar e destruir tudo que o país produz, ou então transformar o Congresso Nacional num rendez-vous da mais baixa extração, a ponto de arquivar, em recente e vergonhosa votação, o processo que pedia a investigação do usurpador da república por clara e explícita corrupção.
Definitivamente, não podemos viver sorrindo para o vento num país desse, em que grassa a miséria, pois não temos razões para tal. Temos sim que cerrar os pulsos e irmos à luta, e cada um lutar segundo suas possibilidades, mas não se deve calar nem relaxar e deixar que o país volte a ser o que foi até a chegada do terceiro milênio: uma republiqueta de regime plutocrata-oligárquico, (des)governada por ditadores disfarçados.
Por Paulo Alves