O jogo para blindar Bolsonaro
Por interesse pessoal, o presidente da Câmara, Arthur Lira, impede o avanço dos mais de 130 pedidos de impeachment. Ao proteger um presidente que perde condições de governabilidade, torna-se sócio dos malfeitos do governo.
Quem acompanhou o presidente nos últimos dias viu um homem acuado, à beira de um ataque de nervos. Com a popularidade derretendo e sofrendo reveses em série na CPI da Covid e na Justiça, Bolsonaro tem recorrido aos militares e faz ameaças crescentes às próximas eleições para tentar se agarrar a um poder que já começa a lhe escapar das mãos. A maior crise institucional desde 2016 avança a passos largos à medida que as investigações sobre a negligência do governo na pandemia se somam às revelações sobre a corrupção na compra de vacinas. Apesar das ameaças crescentes do mandatário contra as próximas eleições, os presidentes do STF (ministro Luiz Fux), do TSE (ministro Luís Roberto Barroso) e do Congresso (senador Rodrigo Pacheco) expressaram em declarações firmes a defesa da Constituição e da normalidade democrática. O único fora do tom, até o momento, é exatamente aquele a quem cabe dar início ao processo de impeachment: o presidente da Câmara, Arthur Lira.
Ele tem se mantido inabalável na defesa do presidente: “Impeachment como ação política eu não faço. Faço com materialidade”. Disse isso apesar dos 23 crimes de responsabilidade apontados apenas no superpedido de impeachment protocolado no último dia 30, que incluem violar o direito à vida dos cidadãos na pandemia, incitar militares à desobediência à lei e não agir contra subordinados que agem ilegalmente. Além de dizer que não há fatos objetivos que justifiquem a abertura do processo (um deboche), o deputado usa o pretexto de que não há condições políticas para sua abertura — afinal, são necessários dois terços dos deputados para aprová-lo. “Esse assunto, já estou cansado de dizer e repetir. Eu não posso fazer esse impeachment sozinho. Erra quem pensa que a responsabilidade é só minha. Ela é uma somatória de características que não se configuram”, afirmou.
Esse discurso injustificável é apenas uma cortina de fumaça. O deputado age ativamente para blindar o presidente, a quem deve o cargo. Como líder do Centrão, Lira foi o articulador do casamento de interesses entre o grupo fisiológico e o presidente há um ano. Em troca, Bolsonaro patrocinou sua eleição em fevereiro passado, por meio de um balcão de negócios entre o Planalto e o Congresso. Com o avanço da crise, aumentou o poder do deputado no jogo de barganhas com o Executivo. Para o presidente da Câmara, quanto mais Bolsonaro estiver debilitado, melhor, desde que se mantenha no cargo. Essa é lógica que move a relação entre os dois. Para o deputado federal e ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha (PT-SP), Lira firmou o compromisso de proteger o governo Bolsonaro já na época em que disputava a presidência da Câmara. “Ele não coloca o impeachment para votar porque foi eleito, inclusive, com esse compromisso. Durante a campanha à presidência da Câmara, esse tema foi debatido”, afirma.
No Congresso, a inércia de Lira incomoda, em especial a oposição. Mas a avaliação dos deputados para a inação do deputado de Alagoas é parecido, da direita à esquerda. Uma pessoa muito próxima ao presidente da Câmara disse que estranha apenas o fato de ele não arquivar os pedidos de impeachment. E atribui esse gesto exatamente à sua sede de poder. “Isso permite que ele fique com a faca no pescoço do Executivo”, disse esse influente parlamentar. E complementa: “A pergunta que deve ser respondida é: se Lira diz que não há fundamentos, por que ele não nega formalmente os pedidos de impeachment? Ele não faz isso pra deixar o presidente sob ameaça constante. É pelo poder.”
Isso não quer dizer que não esteja havendo um intenso jogo de bastidores. Também eleito com o apoio de Bolsonaro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, distanciou-se do presidente após seus ataques em série à CPI. Ao lado do presidente do TSE, Pacheco condenou as ameaças dos militares às investigações no Congresso e a qualquer tentativa de minar as eleições de 2022. Lira também fez críticas à manifestação política dos militares, de forma bem mais amena, mas disse que havia muito “oportunismo” diante da escalada retórica. Em nenhum momento tirou o presidente de sua zona de conforto golpista. Mas isso pode mudar. Autor de um mandado de segurança para obrigar Lira a analisar os pedidos de impeachment, o deputado Rui Falcão (PT) disse que o presidente da Câmara vai evitar fazer essa apreciação até a pressão ficar insustentável. “Estou aguardando o fim do recesso no STF para ver como a ministra Cármen Lúcia vai decidir sobre meu mandado. O presidente da Câmara vai segurar isso até aumentar a pressão das ruas”, afirmou o parlamentar.
Por enquanto, Lira ainda conta com a falta de mobilização nas ruas, apesar do derretimento de Bolsonaro nas pesquisas e das evidências explosivas sobre a corrupção na compra de vacinas que estão chegando perto do mandatário. Um parlamentar próximo a Lira disse que o presidente da Casa ainda não fez nada simplesmente por não haver pressão da opinião pública. “Não acho que tenha clima hoje para avançar com impeachment. Para avançar, tem de ter os ingredientes técnicos e políticos preenchidos. Não vejo nenhum dos dois ainda maduros”, afirmou o deputado, minimizando o que a CPI tem revelado até aqui. “Não vejo Arthur ainda em sentimento de ‘pressão’ para agir”, afirmou. “A PGR ainda não configurou cometimento de crime”, afirmou. Essa versão benevolente destoa da intensa pressão na capital da República. A prorrogação da CPI por 90 dias, anunciada por Pacheco na quarta-feira, e o depoimento evasivo da diretora da Precisa Medicamentos, Emanuela Medrades, que não conseguiu dar explicações convincentes sobre a oferta suspeita da vacina Covaxin, apontam que a crise vai se intensificar. O representante da Davati no Brasil, Cristiano Carvalho, confirmou um dia depois que houve pedido de “comissão” para a aquisição de 400 milhões de doses da Astrazeneca.
Bolsonaro sabe que está nas cordas, e tenta desviar o foco da CPI e das denúncias. Por isso, reuniu-se no início da semana com o presidente do STF, Luiz Fux, para diminuir o mal-estar com suas críticas a ministros do STF e aceitou participar de um encontro entre os chefes de Poderes que deveria reunir o próprio Lira para discutir as “balizas” das relações entre as três instâncias. Nesse movimento de recuo, teve uma crise de soluços e foi hospitalizado por suspeita de obstrução intestinal. Tentou imediatamente capitalizar a internação, atribuindo-a ao atentado a faca que sofreu em 2018. Nessa tentativa de politizar o problema médico, tentou novamente se colocar como mártir e divulgou nas redes uma foto sua no hospital, lembrando o ataque anterior. “Mais um desafio, consequência da tentativa de assassinato promovida por antigo filiado ao PSOL, braço esquerdo do PT, para impedir a vitória de milhões de brasileiros que queriam mudanças para o Brasil. Um atentado cruel não só contra mim, mas contra a nossa democracia”, escreveu. Antes disso, enquanto tentava afastar a crise de Brasília, sofreu outro revés. O ministro Alexandre de Moraes, do STF, liberou o uso de provas do inquérito das fake news e dos atos democráticos em processos que podem atingir o presidente no Tribunal Superior Eleitoral. Ao vincular, em tese, o disparo de notícias falsas nas eleições de 2018 à campanha de Bolsonaro, a Corte abre a possibilidade de, no limite, cassar a própria chapa que o elegeu, junto com o vice Hamilton Mourão.
Para se contrapor à maré de más notícias, Lira tenta avançar no Congresso com uma agenda positiva para evitar o peso da cobrança. Procura imprimir uma marca reformista, que era a bandeira de seu antecessor, Rodrigo Maia. O presidente da Câmara ressalta que já aprovou a autonomia do Banco Central e a PEC Emergencial, assim como a capitalização da Eletrobrás. As duas últimas medidas, no entanto, foram desvirtuadas para atender a interesses corporativos e, especialmente, à voracidade do próprio Centrão. Lira também tem acelerado a aprovação das pautas bolsonaristas, como a introdução do voto impresso (sacada pelo presidente para ameaçar as próximas eleições) e a educação domiciliar (irrelevante no momento em que milhões de estudantes foram prejudicados pela pandemia e estão sem aulas). Na sua breve gestão na Câmara, Lira também já causou polêmica ao patrocinar uma reforma milionária nas instalações da Presidência, que teve o mérito duvidoso de dificultar o acesso dos jornalistas aos deputados.
Improbidade
A maior eficiência, porém, foi demonstrada na aprovação a jato da Lei de Improbidade, um projeto de lei que tramitava desde 2018 e trata de um tema complexo. A norma aprovada na calada da noite na Câmara dificulta a punição de crimes na gestão pública e facilita a prescrição de penas. Por isso, foi apelidada de “projeto da impunidade”. Ex braço-direito do notório Eduardo Cunha, o atual presidente da Câmara defendeu com entusiasmo o novo texto: “Uns vão dizer que o que fizermos é açodamento. Outros vão dizer que é flexibilização. Vão sempre dizer alguma coisa”. Uma declaração que revela de forma quase constrangedora o desprezo pela opinião pública. Essa pauta, que uniu os petistas ao Centrão, pode ficar gravada no futuro como o ápice da sua gestão. O próprio Lira é interessado no assunto, já que foi condenado em duas ações por improbidade administrativa na Justiça de Alagoas e pode se beneficiar de eventuais alterações nas regras de punição.
Ele já foi denunciado por um esquema de rachadinha na Assembleia Legislativa de Alagoas, assim como por ter integrado o “Quadrilhão do PP”, escândalo que envolveu propina paga pela construtora Queiroz Galvão e pode ter causado um prejuízo de R$ 29 bilhões aos cofres públicos. A procuradoria de Alagoas também investiga a suspeita de ocultação de bens e lavagem de dinheiro, segundo denúncia de sua ex-mulher. A intimidade com o poder também é benéfica para a família. O próprio filho, Arthur Lira Filho, é dono de uma empresa de representação de veículos publicitários que prestam serviços a órgãos públicos. Além disso, a Justiça de Alagoas já o condenou por ter utilizado dinheiro público para a compra de um carro para a filha de um colega na Assembleia Legislativa do Estado.
Impeachment
Apesar do currículo duvidoso, o líder do Centrão ocupa hoje uma posição central na República, no momento em que a pandemia — e os crimes que impediram o seu enfrentamento — exige medidas corajosas e visão histórica dos seus líderes. Pelas normas constitucionais, a eventual abertura do processo de impeachment é um ato discricionário do presidente da Câmara. Ele não pode, portanto, ser obrigado a dar seguimento aos pedidos que se acumulam na sua gaveta. Mas isso não o isenta de agir diante das circunstâncias, inclusive excepcionais. Há mesmo uma corrente de juristas que defende a necessidade de uma providência por parte do presidente da Câmara (arquivamento ou encaminhamento a uma comissão especial). Não existe jurisprudência sobre o assunto. Para driblar essa dificuldade, há propostas em discussão no Congresso. Uma delas estipula que o processo de impeachment comece a tramitar se houver a assinatura da maioria dos deputados. É o que propôs a deputada Adriana Ventura (Novo). Pelo projeto, o presidente da Câmara teria um prazo de 60 dias para dar resposta aos pedidos. E o processo começaria a tramitar ao receber o apoio da maioria absoluta dos deputados, ou seja, 257. Seria uma grande mudança com impacto significativo e positivo na vida política, uma contraposição a todos os que condenam a facilidade com a qual o impeachment é aventado no País. Ao contrário, esse instrumento é fundamental no presidencialismo, equivalente ao voto de desconfiança no parlamentarismo.
Especialistas apontam que o grande volume de pedidos de impeachment no Brasil é comparável ao de outros países presidencialistas. Ao invés de representar uma fragilidade do sistema político nacional, é uma demonstração da vitalidade da democracia. Assim, os afastamentos de Fernando Collor e Dilma Rousseff, para citar apenas os casos que ocorreram no período pós-ditadura, não seriam sintomas de uma história política acidentada, mas uma evolução natural. O mesmo raciocínio pode ser estendido ao governo Bolsonaro. Mas o presidente da Câmara, ao contrário, defende mudanças na legislação eleitoral que podem perpetuar as piores práticas políticas. Podem levar já em 2022 ao temerário distritão e ao afrouxamento da cláusula de barreira. A despesa pública para a propaganda política pode aumentar de R$ 1,7 bilhão para R$ 5,7 bilhões, um escandaloso aumento que foi votado à sorrelfa na última quinta-feira. Para favorecer o presidente e afastar o fantasma do impeachment, Lira também acenou com mais um truque. A duvidosa introdução do semipresidencialismo, “mas apenas a partir de 2026”. Ou seja, tenta garantir Bolsonaro e esvaziar o poder de seu sucessor. Mais uma vez, o político alagoano mostra total sintonia — não com a história ou com as necessidades do País, mas com seus interesses pessoais.
Fonte: ISTOÉ