O futebol em tempos de guerra; A história da Ucrânia e o lendário jogo da morte!
Há tempos a Ucrânia vive batalhas sangrentas em seu território e portanto, não é de hoje que o povo e o futebol ucraniano sofrem com os temores e terrores da guerra, confira!
Desde seus primórdios, a região da Ucrânia foi marcada por diversos conflitos entre os povos que buscavam suas terras planas e férteis para prosperar. Contudo, podemos começar a contar a história do país a partir do século V d.C., quando tribos dos povos chamados Eslavos se instalaram no lado ocidental do rio Dnieper (quarto rio mais extenso do continente europeu) e fundaram a cidade de Kiev, atual capital da Ucrânia. Três séculos depois, uma horda de Vikings, denominados Varegos, invadiram e executaram os governantes da cidade e fundaram o Reino de Rus, tornando Kiev, em 882 d.C., a primeira capital do Reino de Rus.
Assim, foi desse grande Estado medieval, conhecido como “Rus Kievana”, que começou a se formar os países que conhecemos hoje como Ucrânia, Rússia e Bielorrússia, sendo que a atual capital Russa, Moscou, surgiu apenas no século 12. A partir daí, durante a idade média, se iniciou um grande quebra-cabeça na região, com diversas batalhas e divisões de territórios até os dias atuais. Primeiro foi o Império Mongol que conquistou a região ucraniana durante o século 13. Depois, no ano de 1360, foram os Lituanos que dominaram a cidade de Kiev, que mudou de mãos novamente em 1482, quando foi conquistada pelos Tártaros, que viviam na região da Crimeia. Em 1569, foi a vez dos poloneses dominarem a região, controlando a maior parte da Ucrânia e transformando muitos ucranianos em servos. Foi quando os Cossacos, povo nativo da região, declarou guerra contra os poloneses e pediu ajuda da Rússia para derrota-los.
Dessa forma, começou uma dura guerra entre Poloneses, Russos, Cossacos e Turcos pelo controle da Ucrânia e terminou com o acordo da “Paz Eterna” entre Rússia e Polônia, em 1686, onde Kiev e as terras dos Cossacos ficaram com a Rússia. A partir daí, começou a se formar o grande Império Russo e que mais tarde viria a se tornar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), após a revolução Russa de 1917. Assim, em 1922, a Ucrânia foi incorporada a URSS, porém, mais de um milênio de batalhas e trocas de governos ajudou a promover o sentimento nacionalista na região e, dessa forma, já não importava mais quem estava no governo, os ucranianos queriam sua independência, principalmente o lado ocidental do país. E esse sentimento crescia cada vez mais conforme o sistema totalitário de Stalin aumentava o controle do território ucraniano e milhões de pessoas morriam de fome.
O Futebol na Ucrânia
Como na maioria do mundo, o futebol chegou na Ucrânia por meio da Grã-Bretanha, quando marinheiros ingleses praticavam o esporte no país eslavo durante suas folgas, por volta de 1880. Assim, o jogo atraiu o interesse dos ucranianos e em pouco tempo ganhou muitos adeptos e fãs no país. No início, o jogo era apresentados em feiras esportivas da época, apenas com apresentações de habilidades dos jogadores em intervalos dos eventos de ginástica. Contudo, em pouco tempo foi construído o primeiro estádio, na cidade de Lvov, comandada na época pelo Império Austro-Húngaro. A primeira partida no estádio aconteceu em 14 de julho de 1894, entre times das cidades de Lvov e Cracóvia, e durou apenas sete minutos devido ao combinado do gol de ouro, quem marcasse o primeiro tento vencia o jogo. Então, Lvov venceu por 1 a 0 o duelo.
Assim, em meio a guerras, revoluções e repressões, o futebol foi se tornando o principal esporte do país. Em Kiev, dois times se formaram na década de 1920, o Dínamo, a equipe da polícia local, e o Lokomotiv de Kiev, o time dos operários. A década de 30 foi marcada por mais tragédias na URSS e ficou conhecida como a época da Grande Fome e do Terror. Nesse momento, o Dínamo de Kiev começava a se transformar em um grande clube da Europa, contratando grandes jogadores que se registravam na polícia local ou na NKVD (Precursora da KGB) para poderem jogar na equipe. Contudo, a segunda guerra mundial se aproximava da Ucrânia e o país se via cercado por dois regimes totalitários.
As atrocidades cometidas pelo bolchevismo neurótico e ditatorial de Stalin causava revolta na população, que convivia com o terror e mortes. Durante esse período, Stalin assassinava as pessoas que eram consideradas espiões ou burgueses que não cooperavam com o comunismo soviético. Dessa forma, o atacante do Dínamo de Kiev, Konstantin Shchegotsky, em uma confusão sobre uma condecoração do estado que ele não teria aceito, foi declarado inimigo do povo e torturado pela NKVD, que queriam uma confissão de que o jogador era um espião polonês, pois o mesmo era filho de um polonês. O jogador ficou mais de um ano preso e contou com seus companheiros de equipe para comprovar sua inocência. Então, três anos após ser solto, ele estava lutando nas trincheiras da Segunda Guerra Mundial contra os nazistas. Shchegotsky morreu em combate defendendo seu país!
Devido a essa repressão stalinista, muitos ucranianos pensaram que o regime nazista de Hitler poderia ser “menos pior” que o soviético. Foi durante esse período que se formou a Organização dos Ucranianos Nacionalistas (OUN), um grupo terrorista anticomunista e pró-independência que era financiado e manipulado pela Alemanha e estavam exilados na Polônia. Assim, quando Hitler invadiu a Ucrânia, ele contou com a ajuda da OUN para entrar no país. Alguns jogadores do Dínamo, influenciados pelo sentimento do povo de que o regime alemão poderia ser melhor, ficaram em suas casas e receberam o exército alemão como salvadores, até mesmo alguns Judeus. Esse sentimento rapidamente virou arrependimento quando milhares de judeus foram assassinados e os jogadores do Dínamo que sobreviveram foram levados para os campos de concentração por serem do time da polícia ucraniana.
F.C. Start – O time que desafiou os nazistas!
Após a Ucrânia ser invadida e dominada pelos nazistas, os sobreviventes de Kiev tentavam voltar a levar uma vida normal sobre o regime nazista, algo quase impossível devido a série de assassinatos que acontecia na cidade. Contudo, Hitler precisava de trabalhadores e após algum tempo nos campos de concentrações, muitos atletas do Dínamo assinaram um termo em que aceitavam as leis nazistas e puderam voltar para Kiev onde se uniram em uma fábrica de pães para trabalhar e morar em péssimas condições.
Então, como forma de tentar convencer o povo ucraniano de que o regime de Hitler era melhor que de Stalin, o regime nazista começou a aliviar suas severas leis. Assim, aumentou-se o abastecimento de alimento na cidade, inaugurou-se o bar à beira do Rio Dnieper com apresentações de Jazz , o toque de recolher foi atenuado e as fronteiras da cidade foram abertas para que o povo pudesse se deslocar e encontrar seus parentes que haviam fugido da cidade. Além disso, o futebol voltou a ser disputado na cidade.
Assim, Nikolai Trusevich, o goleiro e capitão do Dínamo antes da guerra, começou a convocar os jogadores que sobreviveram, e dessa forma, foi criado o F.C. Start, que contava com antigos jogadores do Dínamo e do Lokomotiv de Kiev. Por outro lado, as guarnições alemães formaram mais cinco equipes para a disputa de jogos amistosos. O primeiro jogo foi em 7 de julho de 1942 entre o Start e o Rukh, time do atual primeiro ministro em Kiev. Apesar das condições precárias que viviam os jogadores do Start, suas habilidades superavam todas as adversidades e a cada partida que faziam eles humilhavam os soldados e jogadores alemães. Esta primeira partida terminou 7 a 2 para os ucranianos.
Então, a cada jogo que ganhavam, crescia a moral, o orgulho e o espirito nacionalista da torcida ucraniana e dos jogadores, que começavam a ver que aquilo estava se tornando bem mais importante do que simples partidas de futebol. O povo ucraniano tinha no esporte uma paixão fanática e o Start trouxe de volta o brilho e o orgulho que o povo havia perdido durante vários anos de terror e mortes, e dessa forma, o time foi se tornando um símbolo de resistência na cidade. No fim, os alemães que buscavam pacificar e conquistar o povo de Kiev, acabou vendo um time de futebol reacender a chama nacionalista da região. O F.C. Start fez no total nove jogos, marcou 56 gols e tomou apenas 11, com 100% de aproveitamento.
O jogo da morte
Contudo, a última partida do time ficou conhecida como o jogo da morte. Pois, após de humilhar diversas vezes as equipes alemãs e a raça ariana, o Start se via diante de uma partida tensa, onde os alemães prepararam todo um cenário para derrotar o time ucraniano e acabar com a fama e o orgulho nacionalista que a equipe causava na cidade. O jogo era uma revanche do Flakelf, equipe criada para vencer o F.C. Start que contava com o melhores e mais fortes jogadores e soldados alemães. A primeira partida havia sido mais um massacre dos ucranianos com uma vitória por 5 a 1.
Então, três dias após o primeiro confronto entre as duas equipes, o Estádio Zenit, onde o Start fazia seus jogos estava lotado de soldados alemães de um lado e o povo de Kiev do outro. o clima era tenso e diversos soldados nazistas foram ao vestiário ucraniano para avisar aos jogadores que podia haver consequências caso vencessem a partida. Além disso o árbitro do jogo, que também era um soldado alemão também foi ao vestiário do Start e deixou claro que os jogadores deveriam saudar as autoridades no estádio da mesma forma que os alemães, no estilo “Heil Hitler”.
Depois de algum tempo sozinhos no vestiário, os jogadores entraram em campo e, ao saudar as autoridades, colocaram a mão no peito e gritaram “FizcultHura”,saudação usada antes de qualquer evento desportivo soviético. Assim, o jogo começou tenso e os alemães batiam de todas as maneiras no time ucraniano que não podia revidar ou então seriam expulsos pelo árbitro. Entretanto, a brutalidade alemã foi superada pela estratégia e habilidade dos craques ucranianos que venceram a partida por 5 a 3. Por fim, houve briga nas arquibancadas entre solados e torcedores ucranianos que caçoavam dos alemães. Assim, o sentimento do orgulho ucraniano ficava cada mais maior e o time do Start sabia que sofreriam consequências por mais uma vitória diante da raça ariana.
Para surpresa geral, no fim do jogo não houve nenhuma retaliação e selvageria dos alemães, que a principio aceitaram mais uma derrota e não queriam oferecer mártires ao povo ucraniano. Contudo, uma semana depois o time foi acusado por um membro influente da OUN de pertencer a NKVD e de estarem ridicularizando os alemães e dessa forma, todo o time foi preso e interrogados inúmeras vezes antes de serem enviados para o centro de concentração de Siretz. Apenas um jogador não foi para Siretz, Nikolai Korotkykh, que foi torturado por diversos dias até padecer após o vigésimo dia de tortura. Nikolai era membro ativo da NKVD e as autoridades alemães sabiam disso.
Assim, os 10 jogadores restantes viveram no terror de um dos piores campos de concentração que existia e unidos conseguiram sobreviver por um longo tempo neste inferno. Porém, três jogadores foram assassinados no campo antes do fim da guerra em Kiev, o capitão Nikolai Trusevich, o zagueiro Alexei Klimenko e o habilidoso atacante Ivan Kuzmenko. Hoje os quatro jogadores estão eternizados em uma grande escultura na porta do estádio do Dínamo de Kiev.
Isso tudo aconteceu no momento que se iniciava a batalha de Stalingrado, quando a URSS começou a derrotar o nazismo, e as notícias sobre o F.C. Start correu pelos quatro cantos da Europa como um símbolo de orgulho nacional e uma derrota da ideologia da raça ariana. Assim, a história do time virou lenda e foi usada como propaganda do governo soviético. O F.C. Start nunca mais atuou depois da guerra, contudo, o Dínamo de Kiev reabriu as portas e se tornou um dos maiores clubes da Europa, se tornando a primeira equipe soviética a conquistar um campeonato europeu, quando venceu a Copa Europeia dos Campeões, em 1975.
A independência ucraniana
Então, após o fim da União Soviética, a Ucrânia finalmente conseguiu sua independência em 1991. Entretanto, como podemos ver, as guerras internas e externas nunca deixaram de existir no país, e, como falamos no programa Rifando a Bola, o País convive novamente com uma guerra declarada desde 2014 nas regiões da Crimeia, Donetsk e Luhansk. Com isso o futebol seguiu sendo afetado por lá, pois a região da Crimeia vive um isolamento desportivo, os times disputam a Crimeia Premier League, porém não podem jogar mais nenhum campeonato do mundo. Já os times de Donetsk e Luhansk vivem exilados em outras cidades da Ucrânia devido ao conflito armado que existe na região desde 2014.
Assim, com a invasão russa no final de fevereiro deste ano o futebol na Ucrânia parou novamente, o país inteiro está em guerra e muitos jogadores voltaram a atuar nas trincheiras defendendo seu território, mais um triste cenário para este país que convive com guerras e mortes desde sua criação.
Por Diogo Coelho