Na ONU, Bolsonaro se exime de erros na gestão da pandemia e choca ao culpar índios por incêndios
Em seu discurso na 75ª Assembleia Geral da ONU, o presidente afirmou que seu governo é vítima de uma campanha de desinformação.
Diante de uma Assembleia Geral que celebrava o 75º aniversário da ONU, com o lema “O futuro que queremos”, o presidente Jair Bolsonaro inaugurou nesta terça-feira a reunião de líderes —tradição que reservada ao Brasil desde 1955— atacando com o mesmo estilo de sempre. Primeiro aos meios de comunicação, por supostamente “espalhar o pânico entre a população” ao longo da pandemia de coronavírus. Depois, sobre os incêndios na Amazônia e no Pantanal, Bolsonaro tentou mais uma vez livrar seu Governo das críticas por sua gestão no combate às queimadas ilegais, afirmando, assim como fizera em seu discurso do ano passado, que o Brasil é “vítima de uma das mais brutais campanhas de desinformação”. Sem mencionar as investigações sobre a ação criminosa de fazendeiros, tanto na Amazônia como no Pantanal, o presidente afirmou que “índios e caboclos” causam as queimadas para sua sobrevivência – novamente, sem citar fatores como a ação de garimpeiros e grileiros. Também fez referência às altas temperaturas no centro-oeste brasileiro como culpadas pelo desastre ambiental.
No discurso gravado para a abertura da reunião – adaptação imposta devido à crise sanitária, Bolsonaro se valeu de uma leitura simplista sobre as responsabilidades do Brasil na preservação do meio ambiente para defender o avanço do agronegócio. Empresas do setor se juntaram recentemente a ONGs para apresentar propostas para coibir o desmatamento na Amazônia e evitar a fuga de investidores. O presidente, no entanto, destacou o agronegócio brasileiro como possuidor de uma das melhores licenças ambientais do mundo. As críticas fariam parte de uma suposta campanha de desinformação ambiental -, uma retórica, aliás, que vários ministros estão adotando.
Essa retórica também vale para a Amazônia. Nela, Bolsonaro, vê uma teoria conspiratória, onde a riqueza local seria alvo da cobiça de instituições internacionais, aliada a grupos brasileiros “aproveitadores e impatrióticos”, que teriam como interesse prejudicar o Governo.
Sobre o Pantantal, a linha do discurso presidencial foi parecida. O mandatário disse que que, no caso dos focos criminosos, sem mencionar as investigações da Polícia Federal que identificaram o início de alguns focos em quatro fazendas, o que reforça as suspeitas de que os incêndios foram propositais. “Mantenho minha política de tolerância zero com o crime ambiental. (…) Lembro que a Região Amazônica é maior que toda a Europa Ocidental. Daí a dificuldade em combater não só os focos de incêndio, mas também a extração ilegal de madeira e a biopirataria”, discursou.
Ainda na área ambiental, Bolsonaro também insinuou que a Venezuela foi a responsável pelo derramamento de óleo que atingiu a costa do Nordeste no ano passado, apesar de as investigações ainda não terem chegado a uma conclusão.
O presidente afirmou ainda que o Brasil utiliza uma parcela pequena de seu território para a agricultura, destacando que o país é líder em conservação de florestas tropicais, possui uma a matriz energética mais limpa e diversificada do mundo e é responsável por apenas 3% da emissão de carbono no mundo, apesar de ser umas das dez maiores economias. Com isso, deu a entender que o país tem mais margem para desmatar e poluir, um discurso repetido por aqueles que apontam que os países desenvolvidos chegaram a esse patamar desmatando suas florestas e poluindo o ar. “Garantimos segurança alimentar a um sexto da população mundial, mesmo preservando 66% de nossa vegetação nativa e usando apenas 27% do nosso território para a pecuária e a agricultura —números que nenhum outro país possui”.
Reações
A fala de Bolsonaro já gerou reações de organizações ligadas à defesa do meio ambiente e dos direitos humanos. “Ao arrasar a imagem internacional do Brasil como está arrasando nossos biomas, Bolsonaro prova que seu patriotismo sempre foi de fachada”, afirmou Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. “Acusou um conluio inexistente entre ONGs e potências estrangeiras contra o país, mas, ao negar a realidade e não apresentar nenhum plano para os problemas que enfrentamos, é Bolsonaro quem ameaça nossa economia. O Brasil pagará durante muito tempo a conta dessa irresponsabilidade. Temos um presidente que sabota o próprio país.”
Já Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos, classificou o discurso do presidente de “desrespeitoso aos líderes mundiais”, uma vez “subestima a inteligência e nível de conhecimento e informação de seus pares sobre a crise no Brasil”. Para ela, o mandatário “negou a gravidade da destruição ambiental, culpou ‘caboclos e índios’ e atacou o trabalho de organizações ambientais”.
Gestão da pandemia de coronavírus
O presidente também buscou defender seu Governo das críticas pela gestão da pandemia do coronavírus, que no Brasil já matou mais de 137.000 pessoas. Para isso, terceirizou a responsabilidade aos 27 governadores pela gestão das medidas de isolamento e de “restrições de liberdade”, distorcendo a decisão do Supremo Tribunal Federal determinando que as medidas mais duras de distanciamento social deveriam ser respeitadas, fossem elas decretadas por governantes locais ou não. Ao longo da pandemia, Bolsonaro se posicionou de modo contrário às medidas de isolamento decretadas por Prefeituras e Governos estaduais com base nas recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da comunidade científica. “Ao presidente coube o envio de recursos e meios a todo o país”, destacou o presidente, que também promoveu ao longo da crise sanitária o uso da hidroxicloroquina, cujos efeitos contra a covid-19 não foram comprovados cientificamente.
E partiu para o ataque contra a imprensa: “Como aconteceu em grande parte do mundo, parcela da imprensa brasileira também politizou o vírus, disseminando o pânico entre a população. Sob o lema ‘fique em casa e a economia a gente vê depois’, quase trouxeram o caos social para o país”, discursou.
Em seguida, destacou as medidas econômicas de seu Governo. Ele citou o programa de renda básica emergencial, iniciativa do Congresso Nacional, para 65 milhões de pessoas, afirmando erroneamente que suas parcelas “somam aproximadamente 1.000 dólares” —o valor das parcelas individuais é de 600 reais, equivalente a cerca de 120 dólares pelo cambio atual. Também destacou o apoio para ações de saúde e socorro a pequenas e microempresas, assim como a compensação pela perda de arrecadação dos Estados e Municípios.
Política exterior e aceno à base religiosa
Bolsonaro também afirmou que o Brasil não é apenas “líder em preservação ambiental”, como também se destaca no campo humanitário e dos direitos humanos. E atacou mais uma vez o regime de Nicolás Maduro na Venezuela, ao lembrar que o Brasil acolheu refugiados do país. “A Operação Acolhida, encabeçada pelo Ministério da Defesa, recebeu quase 400 mil venezuelanos, deslocados devido à grave crise político-econômica gerada pela ditadura bolivariana”.
O presidente seu discurso “reafirmando” sua “solidariedade e apoio ao povo do Líbano pelas recentes adversidades sofridas”, assim como confirmando o apoio brasileiro aos acordos de paz entre Israel e os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein. “O Brasil saúda também o Plano de Paz e Prosperidade lançado pelo Presidente Donald Trump, com uma visão promissora para retomar o caminho da tão desejada solução do conflito israelense-palestino”.
Também aproveitou acenar para sua base religiosa, ao fazer “um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”, destacando que “o Brasil é um país cristão e conservador, e tem na família sua base”.
Fonte: EL PAIS