COLUNAS
Morro Velho: o escravagismo resiste
Por JOSÉ MÁRIO ESPÍNOLA (Médico, escritor e enxadrista)
“Quando volta já é outro
Trouxe até sinhá mocinha para apresentar
Já tem nome de doutor
E agora na fazenda é quem vai mandar
E seu velho camarada
Já não brinca mais, trabalha”.
(Morro Velho – Milton Nascimento)
Ao escrever esta canção tão bonita, porém com desfecho muito triste, para mim, Milton Nascimento retratou a realidade social do Brasil. Talvez ele tenha aprendido essa realidade na própria pele.
A letra constrói a amizade de dois meninos numa fazenda do interior de Minas Gerais. Um branco, filho do dono da terra. O outro, preto, filho de lavrador dessa mesma propriedade. Mas não sentiam diferenças, a amizade era superior a qualquer outro sentimento negativo.
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Ambos têm uma bonita infância, onde predomina a camaradagem e a elevada estima mútua: são amigos inseparáveis. Crescem explorando os recantos da fazenda, sempre em brincadeiras.
Mas um dia eis que chega a diferença: o menino branco tem acesso à educação, e parte no trem para estudar na capital. Já o outro, direitos não tem. Resta-lhe apenas o consolo do retorno do companheiro para dar continuidade à amizade.
Ao retornar à fazenda, com a formação completa e já casado com outra branca, a sinhazinha, o homem branco assume a direção da propriedade. E dá conhecimento da realidade para o antigo companheiro negro: ele é apenas um empregado. Grande é a decepção deste.
E assim termina a história, sem um final feliz. Canção bela mais triste.
Essa nada mais é do que a realidade social do Brasil atual. Anos atrás tivemos o prazer de assistirmos na cidade de Bananeiras a uma palestra, muito concorrida, do excelente escritor paulista Laurentino Gomes, a quem fomos apresentados logo após o evento. Um gentleman!
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Laurentino Gomes @laurentinogomes
O tema da conferência foi justamente o escravagismo. Com a habilidade que lhe é peculiar, durante horas o escritor demonstrou que esse sentimento está entranhado na sociedade brasileira desde o século 19.
As suas pesquisas, exaustivas e realizadas com muita profundidade, demonstram profundo conhecimento do assunto. Narram que em 1888 a princesa Isabel promulgou a libertação dos negros escravos no Brasil. Porém a sociedade brasileira, especialmente a elite, nunca pôs a abolição em prática, reagindo de tal forma que marginalizou o negro brasileiro, resultando num pensamento racista passado de geração a geração, até os dias de hoje.
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A escravidão no Brasil é o tema de sua completa trilogia, a mais recente. Laurentino defende a tese de que o sentimento de escravidão nunca deixou a mente da maioria do brasileiro branco. Ou elitista.
Encontramos esse comportamento com muita frequência, quando observamos as relações patrão-empregado. E se estende a todas as pessoas das camadas sociais mais inferiores, independente de sua cor, pesando muito mais o status social, a condição econômica.
Portanto, eu acho que o racismo está no nosso DNA. Porém, só aflora quando permitimos ou somos estimulados. Concordo com Germano Romero: de todos os preconceitos, o pior é o racismo. Mas pode-se muito bem controlar, basta querermos.
Curiosamente, esse sentimento exacerbou-se nos últimos anos. Foi como se boa parte dos racistas da sociedade brasileira tivesse encontrado terreno fértil para sair do armário, espocando diversos casos pelo país.
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Muitos exemplos têm sido vistos Brasil afora. O mais recente foi o espancamento de um entregador negro por uma mulher branca, que usou como chibata a guia de seu cão. Chocante! Só faltou o pelourinho…
A mulher que agrediu o entregador é ex-atleta, professora de voleibol, e é possuidora de uma folha corrida em que constam outros episódios de violência e furtos de energia elétrica para a sua escola.
Ela é portadora, portanto, de uma caráter que é uma miscelânea de arrogância, orgulho, preconceito, agressividade e desonestidade, e apesar de todos esses agravantes, é cheia de direitos. Esse é um exemplo clássico do pensamento de boa parte das nossas elites.
Tudo isso vem corroborar a tese de Laurentino Gomes, provando que, de uma forma generalizada, em pleno século 21 a sociedade brasileira continua ocupando a casa grande, a qual defende com unhas e dentes. E que nunca aposentou nem desmontou a senzala.
DiárioPB com Carlos Romero