Leoni: “Não estou nem aí para o Brasil”
Por Leoni, em seu blog na Medium – Não tô nem aí pro Brasil. Muito menos para a identidade nacional. Isso não quer dizer que despreze o povo que mora aqui ou o que se produziu de cultura dentro das nossas fronteiras. De jeito nenhum. Poderia me ufanar tanto disso que pareceria até um patriota, com perdão da má palavra. A música brasileira é uma unanimidade mundial. Tom Jobim, Gilberto Gil, Carmem Miranda e Caetano fizeram mais pela imagem do Brasil no mundo que todos os Ministros do Turismo juntos. Num país de analfabetos, ajudou a inventar e uniformizar o português do Brasil. Muito mais que qualquer texto fundador. Nossa literatura é riquíssima e muito original. Como não se apaixonar por Machado de Assis, Clarice Lispector, Drummond, Guimarães Rosa e tantos outros e outras? Nosso cinema finalmente vem encontrando reconhecimento mundial. Não é isso. Minha questão é de outra ordem.
Não tô nem aí pro Brasil porque, se existe esse país, foi por conta de muita violência por parte dos portugueses, com colaborações eventuais de franceses e holandeses, e a conivência dos indefectíveis ingleses. A missão “civilizatória” do homem branco.
Existir esse país significa que se passou o rolo compressor colonial por cima de centenas, talvez milhares, de nações indígenas, que foram tratadas como se fossem um só povo, e que receberam esse ridículo nome genérico, índios, por causa de um projeto mal sucedido de chegar às Índias. O genocídio indígena, ainda em curso, é uma das grandes chagas da invenção desse país.
A existência da nação brasileira incluiu a escravização de milhões de seres humanos na África, seu desterro para cá, desprovidos de quaisquer direitos e de sua humanidade. Vindos de reinos diversos, com crenças, línguas e hábitos diferentes, também eram tratados genericamente, mesmo que, na época da Lei Áurea, representassem a maioria da população no nosso território. Para quem não acredita, no censo de 1872, único realizado no Segundo Império, negros eram 58%, brancos, 38% e indígenas, 4%. Essa imensa massa populacional de imigrantes forçados foi segregada e silenciada pelo racismo e pelo medo dos portugueses. Além disso, foi iniciada uma enorme campanha de embranquecimento da população com o incentivo à imigração de europeus para o trabalho no campo. Esse projeto ainda não acabou, continua no genocídio da política de segurança praticado contra os moradores das comunidades mais pobres.
Toda essa riqueza cultural, toda essa mistura de centenas de povos e línguas foi meticulosamente apagada pelos portugueses, que exterminaram a maior parte da população indígena, afastando das cidades os que sobraram, e criminalizaram os negros libertos e sua cultura. Tudo que não era espelho da civilização europeia foi chamado de selvagem ou bárbaro, e marginalizado ou dizimado. Todo conhecimento que não fosse baseado na racionalidade, na ciência e na escrita teria que ser “iluminado” pelos “civilizados”.
Se existe o Brasil é porque o projeto colonialista foi bem sucedido e, no meio de tanta multiplicidade, apenas a língua portuguesa, a religião católica e os modos de produção europeus passaram a ter validade.
O Brasil é uma ficção criada para garantir aos portugueses e a seus descendentes o controle sobre um enorme território e suas riquezas naturais, que foi e é explorado sem piedade. Garantiu também o controle sobre os corpos de seres humanos que não tinham em suas vivências o horror pelo desejo e pelo prazer, que não tinham a culpa católica inscrita em seu DNA. Esse controle se fez pela força e pela catequese compulsória.
Em resumo, o Brasil de hoje é uma distopia em relação ao que poderíamos ter sido se tivéssemos conseguido conviver com as diferenças. Se pudéssemos nos permitir a empatia e a curiosidade pelo outro. Que inúmeras outras formas de viver, de criar, de desfrutar a vida e de se relacionar com o nosso ambiente poderíamos ter desenvolvido?
Por isso não tô nem aí pra tal da identidade nacional. Sei que nossos artistas estavam imbuídos da maior boa vontade quando discutiam como deixar de ser submissos aos padrões europeus e criar uma literatura tipicamente brasileira. Tentando captar a “alma brasileira”, acabaram sendo úteis na invenção dessa narrativa que nos justifica e nos estabelece como um povo único e razoavelmente homogêneo — alguém realmente acredita nessa homogeneidade que une o índio acreano e o sulista de origem alemã? Que tipicidade pode ter um povo cuja população foi, na sua maioria, calada e submetida às práticas e crenças de uma minoria?
Certo estava Borges quando disse que jamais seria um escritor nacionalista porque o conceito de nação era uma criação europeia. Ser nacionalista numa colônia significa aceitar a dominação ideológica da metrópole, que, sem se interessar nem um pouco pela história dos habitantes originários, desenha as fronteiras que lhe interessam, reunindo desafetos e separando aliados, determinando quem entra e quem sai, que atividades são permitidas e quais línguas e deuses são aceitáveis. Até a música passa pelo crivo dos “civilizados”, que já proibiram o samba e agora combatem o funk.
A literatura mesmo, enquanto arte, impôs a uma população quase totalmente ágrafa a primazia da escrita. A tradição oral entrou para o rol das práticas pré-modernas, selvagens, inferiores, irrelevantes. A burocracia portuguesa, a quantidade de papéis necessários para a comprovação da vida, da propriedade, dos laços familiares, de todos os atos importantes e até da morte, separava quem tinha uma história e quem oficialmente não existia.
Portanto não me venham falar de patriotismo. Não me peçam amor à bandeira ou ao hino. Afinal, quem esses símbolos representam? E pior, quem eles oprimem e escondem? Enquanto não incluirmos todas as vozes que habitam essas fronteiras arbitrárias no diálogo nacional; enquanto não aceitarmos toda a diversidade cultural, todos os saberes, todas as línguas, todos os corpos, todos os gêneros e todos os deuses como igualmente brasileiros; enquanto o projeto for de preservação desse legado de violência e submissão; enquanto se puder falar impunemente que temos que preservar nossas “tradições judaico-cristãs”, não tô nem aí para o Brasil.