TOCA DO LEÃO

Improváveis leitores de cordel

Admirei o nome do rapaz, caixa do banco: Arceu Amoroso Lima. Tivemos um Alceu Amoroso Lima que adotou o heterônimo também estranho de Tristão de Athayde, intelectual e imortal da Academia Brasileira de Letras, cuja matéria expirou em 1983. “Desculpe a curiosidade: por que seus pais deram esse nome a você?” “Meu pai era admirador do Alceu, um pensador católico liberal muito conceituado. Arceu se deve a um equívoco do escrivão ao datilografar o nome no registro de nascimento. Casualmente, só havia um formulário disponível, e eu fiquei com esse nome que me embaraçou por algum tempo, mas depois me habituei”.

Foi a segunda vez que fui a essa agência, na cidade Solânea. Na primeira, passada no guichê de atendimento, deixei com outro moço um pacote com alguns cordéis de minha autoria, cortesia do novo cliente a fim de se enturmar. Na segunda ida, fui ao caixa onde operava o Arceu. Reconheceu meu nome. “É o poeta cordelista? Li todos os cordéis que deixou aqui com um colega. Aliás, os funcionários da agência fizeram rodízio com a coleção de folhetos. Gostei muito!” Meu leitor Arceu mostrou que é qualificadíssimo ao entender que essa manifestação da cultura popular brasileira se modificou, busca novos leitores até onde o avanço da tecnologia abre outros espaços em mídias e suportes modernos. O cordel ainda toca seu ritmo com acordes simplificados da poesia popular e a métrica sagrada, mas o discurso chega a ser até vanguardista. Tem poeta inventando o cordel do futuro, em estilos inovadores, sem perder a ternura dos versos singelos que identificam este gênero literário. Isso Arceu viu no meu trabalho.

O folheto é uma brochura de 8 páginas, até 64 páginas, que antigamente chamavam “romance”, com capas ilustradas geralmente por gravuras em relevo, onde a imagem é esculpida em uma matriz de madeira. Hoje em dia, a produção desses folhetos e o ambiente de circulação mudaram muito. Não se encontra mais folhetos nas feiras. Ninguém imprime mais cordel em tipografias toscas do interior. O autor roda seu folheto em casa, de forma artesanal, em seu computador. O público não é mais majoritariamente a classe pobre, semianalfabeta. Como uma atividade conectada ao belo, passou a ser absorvida e apropriada também por gente instruída. E quase não se faz mais folheto visando ganhar dinheiro. Escrever, publicar cordel é mais pela satisfação de consagrar-se a uma arte literária tradicional. Vai distribuindo para um público novo, que começa a reconhecer a beleza e a qualidade da poesia narrativa do cordel brasileiro. Vender folheto, só em salões de artesanato ou ambientes culturais alternativos, para turistas ou pesquisadores. Assim, o poeta editor geralmente não tem uma estrutura comercial e profissional. Distribui sua produção como um cartão de visitas. E o autor não reserva o direito de propriedade. Pelo menos no meu caso, nos meus folhetos, eu deixo a intenção clara de liberar aquela produção cultural para quem quiser copiar, plagiar ou intertextualizar à vontade. Meu cordel não faz parte da indústria cultural, não pretendo massificar minha arte. Os folhetos do velho poeta Mozart estarão sempre fora da economia de mercado e dentro da economia da camaradagem e congraçamento. Mesmo porque consigo, em tese, colocar minhas mensagens poéticas ao alcance do mundo todo, pela grande rede. Todos os meus folhetos estão na plataforma Recanto das Letras ( www.recantodasletras.com.br ).

O cordel é um fenômeno literário nordestino que tem sido ressignificado. Não tanto para superar padrões estéticos, tampouco dar novo sentido às sextilhas do cantador de rua ou balizar fronteiras entre literatura erudita e popular, que jamais existiu. Devemos respeito ao velho estilo de escrever poesia narrativa com cheiro de mato, com jeito, cadência e sotaque das quebradas do sertão melodioso. Só que moro numa cidade cosmopolita e meu discurso naturalmente acontece conforme interesses de uma geração cada vez mais digital. Meu foco é levar cordel pra quem nunca leu um folheto. Uma espécie de desenvolvimento sustentável, porque se alguém consome um produto ruim ou desinteressante, jamais voltará a tentar absorver esse conteúdo. Leandro Gomes de Barros fez o grande cordel do século vinte. Ainda hoje tem leitores, mas Leandro é Leandro. E conhecia macetes que a gente até hoje não sabe, como fidelizar leitores e viver disso. Não pretendo fazer o grande cordel do século vinte e um. Contento-me em fazer leitores inesperáveis e improváveis como os funcionários de um banco.

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Fábio Mozart

Fábio Mozart transita por várias artes. No jornalismo, fundou em 1970 o “Jornal Alvorada” em Itabaiana, com o slogan: “Aqui vendem-se espaço, não ideias”. Depois de prisões e processos por contestar o status quo vigente no regime de exceção, ainda fundou os jornais “Folha de Sapé”, “O Monitor Maçônico” e “Tribuna do Vale”, este último que circulou em 12 cidades do Vale do Paraíba. Autor teatral, militante do movimento de rádios livres e comunitária, poeta e cronista. Atualmente assina coluna no jornal “A União” e ancora de programa semanal na Rádio Tabajara da Paraíba.

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