BRASIL

Discurso de Bolsonaro na ONU é uma aula de novilíngua

Bolsonaro e a mentira: como em 1984, presidente brasileiro usa da mentira de forma sistemática para se perpetuar no poder, construindo uma ideologia oficial de Estado, tal como em regimes totalitários e fascistas.

* Bruno Frederico Müller

Diferentemente de seu discurso de Sete de Setembro, na sua apresentação virtual à Assembleia Geral da ONU, que o Brasil, por tradição, tem a honra de abrir, Jair Bolsonaro, mesmo num discurso gravado, estava inseguro, na defensiva e desconexo – que é como ele soa sempre que precisa se dirigir a uma plateia que vá além de seus fiéis seguidores, ainda mais na arena internacional. O momento era particularmente sensível devido às queimadas criminosas que assolaram o Pantanal no último mês, com o apoio, por omissão, do governo federal.

Foi um discurso recheado de mentiras. Política e mentira sempre andaram de mãos dadas. Governantes mentem, isso é sabido desde que a história começou a ser registrada. E as mentiras por interesse de Estado são discutidas – e legitimadas – por diversos filósofos desde a Antiguidade. Já na Modernidade, o clássico de Maquiavel, O Príncipe, do já distante ano de 1508, declara que a mentira é um recurso legítimo da política, e que, se o soberano se deixar pautar pela moral comum, arriscará não só a própria ruína, mas a de seu Estado.

A mentira de Bolsonaro é diferente, contudo: ela é usada não apenas em tempos de guerra ou para fins estratégicos, nem tampouco com parcimônia em temas politicamente sensíveis, mas de forma sistemática, tendo em vista a consolidação e perpetuação de seu poder, mobilização da militância, construção de uma visão de mundo e uma ideologia oficial de Estado, e peça fundamental de propaganda política. É a mentira consagrada pelo fascismo e os regimes totalitários.

Noutro clássico, esse mais recente, o romance 1984, publicado em 1947, o autor George Orwell descreve uma sociedade totalitária em que a linguagem é reconhecida como ferramenta fundamental de controle da população. O governo encarrega-se de criar uma novilíngua, um novo idioma, com duas características: a simplificação do idioma e a eliminação de palavras inteiras do vocabulário. A ideia é que, limitando as palavras, limita-se também a capacidade de interpretar a realidade e verbalizar ideias.

Outra característica é a inversão dos sentidos das palavras. Na obra, isso fica demonstrado, por exemplo, nos nomes dos ministérios do governo: o órgão encarregado de levar adiante uma interminável guerra com os Estados rivais é o Ministério da Paz; já o órgão encarregado por propagar desinformação e mentiras é o Ministério da Verdade.

Intuitivamente, mas com certa destreza – ao menos para aqueles dispostos a aceitar seu discurso sem verificar as afirmações e os fatos – o discurso de Bolsonaro foi uma aula de novilíngua orwelliana. Peguemos primeiro seus temas centrais: liberdade, democracia, meio ambiente, paz, cooperação e segurança internacional. Estes são os valores que o presidente da República elegeu para destacar seu governo na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas. Como eles resistem ao teste da realidade?.

No campo da liberdade, o governo promove a censura de forma aberta, no campo da cultura, cancelando editais, espetáculos, eventos que não se coadunem com a sua ideologia; por meio da intimidação, usando a Lei de Segurança Nacional para processar artistas, como o cartunista Aroeira, que fez uma caricatura em que Bolsonaro pintava uma suástica sobre a Cruz Vermelha, para simbolizar o descaso de seu governo com a saúde pública em meio à covid-19, ou o tweet da Secretaria de Comunicação acusando de “impatriótico” o humorista Marcelo Adnet por parodiar iniciativa da Secretaria da Cultura de valorização dos “heróis nacionais”.

Também fora da área da cultura o governo federal foi pego produzindo relatórios e listas de ativistas antifascistas, perseguindo e demitindo funcionários públicos por não partilharem da ideologia do governo – quando na verdade o Estado deveria primar pela impessoalidade e, portanto, não assumir a ideologia do governo vigente como “ideologia oficial” – ou simplesmente por cumprirem seu trabalho, como aconteceu com o cientista do INPE Ricardo Galvão, que divulgou dados comprovando o aumento de queimadas na Amazônia.

O que nos leva ao segundo suposto valor fundamental do governo Bolsonaro, segundo ele mesmo. Sua afirmação de que “O Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente no mundo” é peça clássica de novilíngua, pois não é usada para promover uma agenda de redução de queimadas e desmatamento, e responsabilização daqueles que violam as leis ambientais mas, pelo contrário, para justificar o aumento das queimadas e desmatamento e o desmonte dos órgãos de fiscalização e preservação ambiental, deixando os responsáveis pelos crimes ambientais – pecuaristas, garimpeiros, latifundiários – agindo livremente, sem medo das consequências.

Como disse o sociólogo Demétrio Magnoli, em sua coluna na Folha, as queimadas no Pantanal atravessam barreiras líquidas, deixando claro que se trata de uma ação coordenada, e não de um fenômeno natural devido à seca na região. Ao mesmo tempo, o governo não destinou pessoal e recursos para combate às queimadas. As investigações da Polícia Federal vêm confirmando que os incêndios criminosos são obra de pecuaristas, com o objetivo de abrir pastagens para gado. Mesmo assim, o governo acusa a imprensa de “campanha de desinformação”, afirma que os incêndios são consequência das altas temperaturas e material orgânico em tempo seco, e ao mesmo responsabiliza “índios e caboclos” por produzir queimadas para fins de subsistência.

No campo da democracia, depois de promover diversas manifestações antidemocráticas, pedindo o fechamento do Congresso e do STF, em pleno período de isolamento social, foi vazada uma reunião ministerial de 22 de abril, recheada de ameaças a governadores, prefeitos e ministros do STF, e uma defesa de que a população se armasse para se defender das supostas violações da liberdade – as medidas de distanciamento social – e, assim, agir como braço armado do governo. Mais tarde veio à tona que em 22 de maio o presidente declarou sua disposição de fechar o STF e buscar uma justificativa legal para a medida no artigo 142 da Constituição Federal, no que acabou sendo demovido por outros integrantes do governo.

O Estado brasileiro não pode ter ideologia ou religião oficial. A maioria da população brasileira pode ser conservadora e cristã, mas não o Estado. O Estado é democrático e laico, deve respeitar todas as opiniões e religiões, e proteger as minorias políticas, religiosas e sociológicas de uma ditadura da maioria – que é o verdadeiro sentido que Bolsonaro dá à democracia.

Entre ataques às liberdades de expressão e outras liberdades civis, ataques às instituições e uso dos poderes do Executivo para instrumentalizar a administração pública, perseguir inimigos e instituir uma ideologia oficial, a democracia brasileira nunca esteve tão fragilizada, desde que foi consagrada pela Constituição Federal de 1988. E num raro momento de autoconsciência, o presidente admite isso ao afirmar que “o Brasil é um país conservador e cristão”, mas logo retrocede à novilíngua: denuncia a “cristofobia” num país onde avança o fundamentalismo cristão, um dos sustentáculos do governo. Também no campo da liberdade religiosa, a verdadeira ameaça vem de Bolsonaro e seus aliados.

No campo das relações internacionais, o desempenho do governo e sua diplomacia não é mais auspicioso, e está longe de promover paz, cooperação e segurança. Provocações ao governo venezuelano, acusações não fundamentadas de que este seria responsável pelo derramamento de óleo na costa brasileiro em 2019, constantes conversas com o governo estadunidense sobre a possibilidade de intervenção militar externa naquele país, se não com participação do exército brasileiro, com licença para que nossas fronteiras fossem cruzadas, tornam o Brasil e a América do Sul, hoje, um dos focos de instabilidade na política internacional.

Do outro lado do Oceano Atlântico, longe de colaborar para a paz no Oriente Médio, o governo tomou a decisão imprudente, do ponto de vista diplomático, e insustentável, do ponto de vista do direito internacional, de reconhecer Jerusalém como capital oficial de Israel, recuando parcialmente apenas depois das ameaças de retaliação comercial dos países islâmicos.

Por fim, no concernente à cooperação internacional, o Brasil nunca esteve tão isolado, ameaçando – e de novo desistindo, apenas por pressão dos próprios produtores rurais brasileiros – sair do Acordo de Paris, não ratificando o Acordo de Migrações, tendo, com suas políticas antiambientalistas, paralisado a ratificação do Acordo Comercial Mercosul-União Europeia, além de votar sistematicamente, na ONU, junto com um punhado de ditaduras, contra matérias de direitos humanos, direitos das mulheres e até saúde da mulher, sob o argumento de que estas são pretexto para o avanço das pautas da “ideologia de gênero” e do aborto.

O que nos leva ao último ponto: o total descompromisso do governo brasileiro com os direitos humanos, lá fora como aqui dentro, tendo sido acusado de promover torturas em presídios sob intervenção federal, e cooperando, por omissão, com assassinatos de indígenas, trabalhadores rurais e a ação das milícias nas zonas urbanas.

O presidente Jair Bolsonaro mentiu muito, prolificamente, desavergonhadamente, sobre diversos assuntos genéricos e específicos, em seu discurso à Assembleia Geral da ONU. Mas não basta apenas saber o quanto o governo Bolsonaro mente: é preciso compreender por que, com que propósitos, e com base em que premissas. A mentira e desinformação, típica de regimes totalitários, não deixa margem para dúvidas sobre o projeto sombrio de poder do governo Bolsonaro para o Brasil.

O presidente pode ser mal-articulado, desilustrado e mau estrategista; suas ações podem ser erráticas ou ineficientes. Porém, por de baixo da confusão e cacofonia, há um projeto, ou pelo menos um ideal, muito claro para o Brasil. Mais que ditatorial, é um ideal totalitário, que foi apresentado de forma mais clara, como defendi em artigo anterior, no seu discurso de Sete de Setembro.

É um ideal que, mais do que a atitude condescendente de esperar para ver o governo cair por seus próprios erros, exige reação vigorosa, não só da oposição, mas dos demais poderes e da imprensa, em defesa da democracia brasileira. Se o Brasil não se levantar contra as aspirações e práticas totalitárias do governo Bolsonaro, a morte da democracia, se vier, terá contado com a conivência, por omissão, da sociedade e, pior, daqueles que deveriam ser os guardiões do Estado democrático de direito e da Constituição Federal de 1988.

Em conclusão, quando Bolsonaro diz que a democracia, a liberdade, o meio ambiente, os direitos humanos, a paz, a segurança e a cooperação internacionais são prioridades em seu governo, isso não é uma mentira simples, pois de certo modo elas são. Só que sua prioridade não é a conservação desses pilares das modernas democracia e política internacional, mas sua destruição. Assim funciona a novilíngua bolsonariana.

* Bruno Frederico Müller é doutor em História pela UERJ, escritor e tradutor.

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Redação DiárioPB

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