Diretor da Funarte prega ‘guerra’ a artistas e chama Fernanda Montenegro de ‘sórdida’
Nascido em 1973 e com décadas de atuação profissional, como dramaturgo e diretor, Roberto Alvim não pode ser chamado de neófito do teatro. Já recebeu indicações e ganhou prêmios. Mas certamente jamais atingiu tanta projeção como agora, ao atacar a atriz Fernanda Montenegro, que em outubro completará 90 anos, por causa da revista literária Quatro Cinco Um. A edição de outubro trará – para os assinantes – uma fotografia em que Fernandona, como é chamada pelos colegas, aparece amarrada como se fosse uma condenada pela Inquisição (século 12 d.C.), com livros jogados aos seus pés, alegoria de tempos de obscurantismo e apologia da censura.
Pois aos olhos de Alvim – que se apresenta no Facebook como “dramaturgo, professor de artes cênicas e diretor de teatro/cristão, nacionalista e conservador” –, Quatro Cinco Um é revista “esquerdista”, Fernanda Montenegro, por quem ele diz sentir desprezo, é “sórdida” e “mentirosa”. E não há diálogo com a classe artística, com a qual ele diz travar “uma guerra irrevogável”.
Alvim é diretor do Centro de Artes Cênicas (Ceacen) da Fundação Nacional de Artes (Funarte). A “classe artística” reagiu às ofensas do diretor, que se refere aos artistas como “corja”, que estaria “deturpando os valores mais nobres de nossa civilização, propagando suas nefastas agendas progressistas, denegrindo nossa sagrada herança judaico-cristã”. Ele prega “renovação” da classe teatral e “renascimento” da arte no teatro, contra quem “tentou, com suas obras demoníacas, adoecer a população brasileira nos últimos 30 anos”. Cita o lema Ad Majorem Dei Gloriam, “para glória maior de Deus”, da Companhia de Jesus, da ordem dos jesuítas.
O diretor da Funarte, bolsonarista e seguidor do astrólogo Olavo de Carvalho, ataca uma capa inexistente, já que a imagem citada não abre a revista. Irá para assinantes, inclusive para quem fizer a assinatura até o Dia das Bruxas. Ele cita uma “entrevista” da atriz, que não falou com Quatro Cinco Um. A entrevista a que se refere é possivelmente a concedida na semana passada ao jornal O Estado de S.Paulo, em que ela afirma: “Estamos virando um país conduzido por uma visão religiosa”. Segundo ela, há uma “mentalidade” de censura moral. “E a cultura tornou-se o primeiro item a ser revisto e, se possível, exterminado”. A publicação de outubro traz textos de Gregorio Duvivier, Mariana Maltoni e Sérgio Augusto sobre Fernanda Montenegro.
O jornalista e escritor Sérgio Augusto, por exemplo, fez o artigo “A menina que roubava a cena”, comentando a trajetória e a autobiografia que a atriz está lançando (Prólogo, Ato e Epílogo), com a colaboração da Marta Góes, pela Companhia das Letras. “Há décadas nossa maior e mais consagrada atriz, Fernanda Montenegro chega aos noventa como a única unanimidade nacional poupada pela polarização política dos últimos três anos, sem, contudo, a sensação de dever cumprido”, diz Sérgio no início do texto. “Simples: ela nunca encarou como dever o que fez e continua fazendo, com a paixão de sempre e um vigor que o peso da idade em nada afetou”, acrescenta. Ao jornal O Globo, também na semana passada, ela declarou que não pensa em parar: “Não sei como é a vida sem trabalho, me daria uma sensação de desgaste físico, psíquico. Não sei como é ficar parada. Nem quero”.
No livro, há passagens críticas sobre a cultura nos tempos de Fernando Collor, por exemplo. A uma pergunta sobre os dias de hoje, ela diz à Folha de S. Paulo: “Agora é pior. Antes era só político, agora é também moral, por razões de comportamento. ‘Teatro é o espaço do demônio!’ É isso”.
Se Alvim não pode ser considerado um desconhecido no meio, Fernanda Montenegro há tempos ganhou a alcunha de primeira-dama da arte, a qual se dedica há sete décadas, e é conhecida inclusive internacionalmente. Além de premiações diversas, como o Emmy, encenou peças como A Moratória, O Beijo no Asfalto e Fedra, trabalhou em filmes como A Falecida, Eles Não Usam Black-tie e Central do Brasil (por sua atuação, foi a primeira atriz brasileira indicada ao Oscar, em 1999) e em novelas como Guerra dos Sexos.
A “classe artística” contra a qual o diretor da Funarte guerreia se posicionou em defesa de uma de suas principais representantes. Pelo menos um ato já está programado, na noite de hoje, em Belo Horizonte.
Rede Brasil Atual