Desobediência é o que resta de dignidade, diz jornalista
A movimentação em torno das votações no Congresso para devolver o mandato ao senador Aécio Neves e barrar a denúncia ao presidente não eleito e dois de seus ministros, revelou momentos de pura barbárie. Não bastasse o jogo escancarado de utilização de recursos e cargos públicos para comprar votos, medidas anunciadas pelo governo promovem uma torpe viagem regressiva no tempo e na história da conquista de direitos humanos. Na contramão das normas consensuais no mundo civilizado e da Organização Internacional do Trabalho, o país redefine o conceito de escravidão contemporânea. Para pior.
As condições de trabalho podem ser degradantes, com carga horária desumana, com retenção de documentos e estabelecimento de dívidas impagáveis com o patrão. Vale tudo. Se não tiver tronco ou cárcere privado, não é trabalho escravo. O entendimento moderno, que propõe o combate às condições análogas à da escravidão perde o sentido e retroage ao século 18. A medida, por meio de uma simples portaria, atende às demandas da bancada ruralista, que se apressou em comemorar. Temer, não apenas fingiu não ouvir os protestos, como desconversou frente à possibilidade de sanções internacionais. Faz de morto pelo menos até que os votos da sessão definitiva da Câmara estejam sacramentados.
A barbárie instituída com a medida não é apenas uma promessa jogada junto com veneno nos campos do país, nas carvoarias e nas periferias das cidades. A portaria operacionaliza o horror, destruindo os instrumentos existentes de fiscalização e controle do trabalho escravo. O trabalho dos fiscais fica prejudicado em termos legais e práticos, passando a exigir a formalização de uma ação policial, por meio de boletim de ocorrência, entre outros cerceamentos. Além disso, a divulgação da lista das empresas que escravizam trabalhadores passa a ser de atribuição única do ministro do trabalho, que vê sua função minguar da regulação de direitos para a de capitão do mato de ruralistas.
Em outro contexto, mas com inevitável similaridade, o prefeito de São Paulo, João Dória (que apoiou a portaria escravagista), anuncia o uso de uma farinha feita com alimentos perto da data de vencimento para reforçar a merenda nas escolas e combater a fome. Em sua defesa da proposta, o prefeito mistura na mesma massa o papel dos empresários que participarão do projeto e as necessidades da população. Na mentalidade empreendedora, fome é oportunidade de negócio. É fácil saber onde vai atuar o fermento dos recursos públicos. Para completar, confirma o que disse há alguns anos num programa de televisão, afirmando que pobre “não tem hábito alimentar”, tem fome.
De forma arrogante, como é de seu feitio, o gestor deixa escapar, além da evidente insensibilidade, sua ampla incompetência. Em termos de segurança alimentar, contrapondo-se a todas as ações do setor que recomendam sempre o uso de alimentos saudáveis e minimamente processados. No aspecto cultural, ao considerar a alimentação apenas com suprimento de nutrientes, e não uma relação ecológica e emocional. Sem falar da falta de avaliações técnicas em torno de um produto que por enquanto só foi visto na forma de Bonzo.
Falha também no aspecto ambiental, pela concentração de recursos em empresas de transformação em vez de valorização da agricultura familiar. Em pedagogia, ao retirar do aluno seu vínculo com a realidade para contabilizá-lo como expressão de uma carência alimentar. As entidades de nutricionistas foram unânimes em condenar o projeto. É bom lembrar que o prefeito, entre as publicações da editora que faz parte de suas empresas voltadas para inflar o ego de empresários, tem entre seus títulos a revista “Caviar Lifestyle”.
Nas ruas e nas redes
Só há uma saída quando a situação escapa ao controle das instituições políticas convencionais: a ação anticonvencional. Se o Congresso perdeu a capacidade de agir de acordo com suas atribuições, não deve ser visto como espaço por excelência da política. A recusa do poder do parlamento pode se dar de muitas formas, a mais significativa delas, no atual momento, a concentração de esforços nos instrumentos de democracia direta e na acumulação de forças para outras estratégias mais consistentes. Acreditar que é possível vencer o atual legislativo, em sua composição conservadora e antipopular, de acordo com seus procedimentos, é um equívoco que já ultrapassou a barreira da ingenuidade.
O fortalecimento da revolta a partir de bases populares contribuirá ainda para revitalizar a gramática política brasileira. Até mesmo a forma de manifestar descontentamento vinha sendo monitorada pelo sistema: manifestações embandeiradas e palavras de ordem que se foram com o vento, deixando uma vicária sensação de participação política. Quem reclama hoje da falta de pessoas na rua precisa entender de que pessoas e de que rua está falando. Teve golpe, Temer não está fora e as diretas não vieram. Com o golpe de vento em popa, o MBL, canarinhos e evangélicos agora querem puxar a discussão para pessoas peladas.
O mesmo em relação aos meios de comunicação. A batalha de ideias precisa ser intensificada. A direita se move. O monitoramento da comunicação nas redes sociais, em casos polêmicos como a censura a manifestações artísticas, por exemplo, tem deixado preocupantes sinais no ar. O que a Globo tem de extensão, as redes reacionárias com seus seguidores brucutus têm em intensidade.
É preciso ataque nos dois flancos: desenvolver uma comunicação popular eficiente e entrar de forma determinada na guerrilha digital. Sem falar da retomada do urgente da comunicação pública, sobretudo nos estados e municípios, neste momento de impasse da EBC. Alimentar a mídia conservadora com publicidade pública e lamentar-se depois, como Lula e Dilma, não traz a pasta para dentro do tubo.
A força do conservadorismo mantém sua pauta. A abertura anunciada da exposição “Histórias da sexualidade”, no Masp, em São Paulo, já deixa entrever certa conquista de terreno pelos movimentos de direita e religiosos mais atrasados. A exposição já parte com bandeirada de 18 anos, definida pela própria instituição, cedendo de antemão a argumentos que expõem no mínimo a fraqueza em enfrentar a discussão. A palavra sexualidade, em si, parece encher de volúpia os conservadores e acovardar os curadores. Toda a defesa do poder questionador da arte, em temas tão necessários como a sexualidade em um tempo de preconceito e fobia à diversidade, foi derrubada pela tarja da conveniência antes mesmo da abertura das portas.
Há sinais de resistência. No caso do trabalho escravo, os fiscais e procuradores não aceitaram a decisão do governo e devem partir para o confronto. Já houve represálias e afastamento de funcionários. A resistência em adotar os novos procedimentos, nesses casos, é um imperativo ético, já que se trata de um valor maior que aquele que emana da portaria.
Um estado democrático de direito deve ser o império da lei. A universalidade das leis se fundamenta na defesa de que todos são iguais em dignidade e respeito à vida e à liberdade. Quando essa condição é fraturada – com a barbárie da escravidão, da censura, perda do sentido da representação política, da partidarização da justiça e da animalização dos pobres, entre outros – há muito se rompeu o pacto civilizacional. Nessa hora, a desobediência é o único resquício de humanidade.
Brasil de Fato