Democracia “cheirosa”
“O rio só corre pro mar” é um ditado popular que expressa uma triste verdade sobre a mentira “meritocracia”, em especial na política. A história recente mostrou a importância da democracia e seus poderes constituídos contra os ataques totalitários. Claro, nunca se viu nada parecido desde o golpe de 64. Em 2016 com o golpe parlamentar midiático e jurídico que derrubou a presidenta Dilma Roussef passou perto, mas foi apenas um “abre alas” para o que viria a seguir com a ascenção do neo fascismo personificado na figura patética, inculta e truculenta de Jair Bolsonaro. Este, a maior tragédia vivida por nossa jovem e instável democracia. Mas, infelizmente, não parou por aí. Outros atores anti-democráticos entraram no jogo democrático travestidos de democratas, só que não. Isso ficou muito evidente nas eleições de 2018 e 2020. Se nosso processo eleitoral é justo, na lógica democrática, como explicar que com 70% da população de pretos e pobres e 51% de mulheres tenhamos um Congresso, majoritariamente, de homens brancos que se dizem héteros e de carreira política hereditária? A resposta esta em um conjunto de forças que desequilibram o jogo, vou começar pelo institucional.
O sistema eleitoral brasileiro se destaca por ser o pilar da nossa democracia. Mas não é bem assim. Os TREs, caríssimos, têm como função realizar, fiscalizar e concluir o processo eleitoral, assim como julgar aqueles que infringirem as regras. Mas as regras são mutantes, a cada eleição Congresso apresenta uma nova legislação ou altera as existentes. E isso não é por acaso, é método. Uma das várias práticas utilizadas por políticos profissionais para se manterem no mesmo lugar de poder. Vou aqui apontar apenas a principal falha dos TREs, não coibir e nem punir as FLAGRANTES campanhas antecipadas. Como candidatos do espectro popular podem enfrentar um debate pautado pelo poder econômico? Talvez essa seja a origem da chamada crise de representatividade, isto é, um parlamento que não representa o povo. E onde não há povo, diversidade, pluralidade, movimentos sociais e de classe, sinceramente, não dá pra dizer que há democracia plena.
Outro velho conhecido dessa distorção da nossa democracia, e coloque velho nisso, é a midia familista e corporativa. Os grandes veículos de comunicação (tvs/rádios/internet) interferem no processo eleitoral diretamente de várias formas, a principal é através do jornalismo, mas novelas e séries reforçam percepções negativas ou positivas para determinados fatos ou situações, dependendo de quem apoiam. Hoje se fala muito em “fakenews”, mas a mentira não é novidade e os jornalões usaram e abusaram delas. Claro, se valendo das técnicas jornalísticas, criaram meias verdades ou meias mentiras, temos exemplos de praticamente todos os veículos dessa interferência. Vai desde a clássica manipulação da Rede Globo pra eleger Collor até a ação ostensiva e conjunta no golpe de 2016. O jornalismo virou instrumento de aniquilação de adversários politicos. Foi tão eficiente, que demonizou políticos e, pior, a politica. Os resultados,todos nós vimos e sentimos na pele.
Essa postura da mídia declaratória, sem nenhum controle ou regulamentação, empoderou o segmento agregando outra excrescência, o “jornalismo influencer”. Mentiras em série e análises toscas são apresentadas como verdades e/ou o desejo das massas. 2013 e as jornadas em São Paulo exemplifica bem isso. O que era muito ruim e uma afronta ao bom jornalismo, “viralizou”! No pior sentido da palavra. A imprensa deu lugar às empresas, o “opinismo” sem lastro passou a ser verdade segundo a conveniência eleitoral da hora. A nova modalidade de engodo são as pesquisas de intenção de voto há um ano do pleito, os favoritos são sempre os mesmos, basta olhar os sobrenomes. Traduzindo; a mídia familista, sites, blogs e afins declaratórios, viraram uma grande assessoria de imprensa que só dá voz às oligarquias.
Se essa realidade já era assustadora, fica ainda pior com a chegada de mais três segmentos anti democráticos e muito, muito retrógrados, mas com um grande poder de mobilização. Falo do fundamentalismo religioso, do militarismo e do agro monocultor. O crescimento desses “conservadores” ficou claro em 2018 e se confirmou em várias cidades em 2020. Uma das características dessa “gente de bem cristã” é a “ignorância full” e muito dinheiro. Quem vê, ouve ou lê essas figuras histriônicas, percebe o quanto estamos à mercê da imbecilidade, truculência, negacionismo e do terraplanismo político e social. Não apresentam um único projeto ou pauta de interesse popular, pelo contrário, vomitam delírios sobre estado mínimo, ideologia de gênero e doutrinação de professores, não vou nem lembrar da “mamadeira de piroca”. Vemos diariamente um desfile dessas aberrações nos parlamentos municipais e estaduais e, principalmente, no Congresso Nacional, o pior da história da República. Como alguém sem nome, dinheiro ou padrinho político pode entrar nesse jogo de cartas marcadas?
A combinação de uma justiça eleitoral lenta com uma mídia sem escrúpulo e sem respeito ao povo, somadas aos setores mais conservadores que andam de mãos dadas com o famigerado “deus mercado”, ampliam o fosso das desigualdades sociais, econômicas e políticas, ambiência perfeita pra conter qualquer renovação política. Desse modo, fica muito difícil acreditar que vivemos na democracia que fomos defender nas ruas desde a ditadura. Quebrar esse circulo vicioso é o desafio para os campos progressistas e verdadeiramente democráticos, seja da esquerda, direita ou centro. Pensar e agir politicamente é nossa melhor chance, considerando 2024. Aprendi no batente, ainda no século passado (analógico) que “sem democracia não há imprensa livre”. Em pleno século XXI, inverto essa lógica assertiva para o mundo digital, sem imprensa livre e independente, não há democracia e nem eleições justas! Sem “paridade de armas” na disputa eleitoral o rio continuará sempre correndo pro mar nessa grande república de parentes que é a política brasileira.
Por Ulisses Barbosa