De como o Cão Canjiquinha salvou minha crônica
É aquela velha história do cronista em estado de “branco”, o resenhista sem assunto, catando aqui e ali uma frase, uma ideia, uma sugestão para iniciar o trabalho. Uma brechinha de luz que dê inspiração suficiente para atrair a atenção do leitor, e olhe que isso hoje em dia é quase impossível nesses tempos de celular à mão, a tecnologia comunicacional com suas plataformas e conteúdos inesgotáveis. Quase ninguém lê o cronista de jornal impresso, vencidos que estamos sendo pelos blogs, as correntes de e-mail e as redes sociais. A crônica, no entanto, sobrevive nesse ambiente eletrônico. Adaptou-se, como fez o cordel brasileiro que passou do formato tradicional impresso para os suportes digitais, sem deixar de levar a xilogravura, estampa que é uma espécie de design desse gênero.
Resta sublinhar as vozes e imagens da internet, notável por manter aquele padrão de jornalismo de estagiário, precário e, o mais das vezes, preconceituoso. E ridículo, sempre. O que rolou nesta semana, além das ações desastradas e canhestras do “comandante” das forças supérfluas, vale destaque para o quesito “aborto gospel” a fala de um tal pastor Tupirani da Hora Lores, da Igreja Pentecostal Geração Jesus Cristo, no Rio de Janeiro. O jornal O Globo publicou reportagem sobre rajada de verbalismo intolerante do tal pastor. Racismo e homofobia no seu estágio mais sórdido. O discurso de Lores foi feito em resposta ao pedido de desculpas da pregadora Karla Cordeiro, a Kakau, da Igreja Sara Nossa Terra. Ela havia dito para os fiéis pararem de “ficar postando coisa de gente preta, de gay”. Após a repercussão do vídeo e da abertura de um inquérito policial, Kakau publicou uma nota de retratação. O pastor Tupirani respondeu à pregadora: “Sabe o que você é, Karla Cordeiro? Você é uma puta, uma prostituta, seu pastor deve ser um veado e a sua igreja toda é uma igreja de prostitutas. Vocês não são evangélicos. Malditos sejam vocês, que a garganta de vocês apodreça por terem ousado tocar no nome de Jesus, raça de putas e piranhas, é isso que vocês são. A igreja de Jesus Cristo não levanta placa de filho da puta negro nenhum, não levanta placa de filho da puta de político, não levanta placa de filho da puta de veado. A igreja de Jesus Cristo só levanta a sua própria placa”.
Peço a indulgência dos meus raros leitores por transcrever tamanha sujidade, mas é que fiquei com uma exasperação dos diabos diante da agressividade do pastor e porque precisei mesmo preencher espaço vazio nesta crônica sem entusiasmo e pobre de ideia. Lamentável, ambos os fatos: minha pouca inspiração e a manifestação de penúria moral desse pastor protestante. A sensação é de estarmos encurralados por uma horda de insanos e aleijados morais sem nenhum escrúpulo, todos enfeitados com medalhas, cruzes, bandeiras verde-amarelas, tanques, canhões, carrões, insígnias e estandartes da idade média, “pelas ruas marchando indecisos cordões”.
Faço um personagem no programa de humor chamado “Rádio Barata”, o Cão Canjiquinha, um diabo perdido no meio de um inferno esculhambado, repleto de gente burra, sem a mínima noção da realidade que o cerca. O Cão Canjiquinha faz parte dessa possessão coletiva de forças do mal travestidas de cristãos, patriotas e salvadores de uma suposta pátria, cujo território farpado é insensatamente defendido por cães de guarda sem cérebro. Meu temor: ter que vestir uma camisa verde-amarela no dia 7 de setembro como salvo conduto. Terreno minado da cidadania manchada de segregacionismo.
O Cão Canjiquinha perdeu a paciência com a vil humanidade e passou a ter um comportamento antissocial. Chegou a ignorar a higiene bucal para adquirir mau hálito e caprichar no fedor de enxofre com ingestão generosa de alho e cebola. Lidar com essa realidade estranha não é tarefa simples. Nem mesmo para o Filho das Trevas. Trauteando toada do cantor Botika, Canjiquinha avisa para a família cristã: “Alguém vai sair machucado daqui”.