“Corno nenhum me governa”
No fim do século dezenove, nasceu em Monteiro, na Paraíba, um poeta que se tornou legendário na arte de fazer repente ao som da viola, instrumento por sinal que ele nunca aprendeu a tocar. Cantando também era um desastre: voz feia e sem ritmo. Mesmo assim, foi um dos maiores, senão o maior poeta repentista do Brasil. O nome dele: Severino Lourenço da Silva Pinto, que ficou conhecido como Pinto de Monteiro. Viveu e morreu pobre, cantando nos Estados de Pernambuco e Paraíba.
Sua genialidade é incontestável, mas o ponto em que quero firmar tese é sobre o pensamento anarquista nos artistas populares. Numa ocasião, o poeta Expedito Sobrinho, cantando com o velho Pinto, terminou uma sextilha assim:
“Pinto tem setenta anos Talvez não chegue aos oitenta”. Ao que Pinto respondeu: Eu vivo é cento e quarenta Achando a vida moderna Escorado na bengala Coxeando duma perna Quem me domina é Jesus Corno nenhum me governa”
No Nordeste brasileiro, os homens nunca foram livres. Os que se declararam livres foram marginalizados e exterminados. O movimento de banditismo rural promovido pelos cangaceiros do começo do século vinte nasceu do inconformismo de homens valentes que não se submetiam à tirania dos coronéis. Os visionários religiosos comandavam multidões de fiéis esfarrapados, com a promessa de um mundo sem senhores e sem patrões. Se bem que o Antonio Conselheiro sonhava mesmo com a volta do rei português D. Sebastião. Os escravos africanos fugiam do inferno do cativeiro para fundar seus quilombos, onde estabeleciam uma sociedade igualitária, na maioria das vezes.
Nos fundos das matas, aprendiam com os índios, cada um era dono de seu nariz e viviam em comunidades harmônicas de respeito mútuo. Esse anarquismo primitivo, cultivado nas sociedades alternativas do Brasil, foi diluído pelo rolo compressor do capitalismo que esmagou as populações e suas experiências alternativas de vida. A liberdade humana nunca ficou mais reduzida do que nos canaviais, nas casas grandes, nas fazendas dos sertões, nas estruturas sociais do Brasil colonial, seguindo-se a lógica da opressão ao longo da nossa história, até os dias de hoje.
Entretanto, mesmo nas mentes mais presas aos limites de uma cultura de humilhação e desigualdades, o sentimento de liberdade, profundamente arraigado no ser humano, sempre brotou no homem simples, no escravo, no artista do povo que disfarçava seu discurso contestador nos folguedos e cantigas. Assim, o negro preservou suas raízes culturais e religiosas por meio do sincretismo. Tomemos como exemplo o teatro popular de bonecos, que na Paraíba é chamado de Babau e em Pernambuco tem o nome de Mamulengo. As “estórias” são geralmente improvisadas, com diálogos inventados na hora, de acordo com as circunstâncias e a reação do público, misturando bichos – cobras, bois, cachorros, onças; e gente – vaqueiros, latifundiários, bandidos e entidades sobrenaturais como, o Diabo, a Alma, a Morte. Os personagens do mamulengo chamam-se geralmente Benedito, Cabo 70, Professor Tiridá, João Redondo, e são negros, na sua maioria, figurando quase sempre um vilão de cor branca. Resposta do artista do povo ao racismo latente nas relações sociais.
Nas tramas do babau, geralmente a polícia é ridicularizada. Os patrões são igualmente escarnecidos e achincalhados pelo humor bruto dos bonequeiros. A “ordem estabelecida” é colocada em xeque diante da negação de qualquer tipo de autoridade nos episódios que se desenrolam em cima da empanada do mamulengueiro. Essa quebra da hierarquia social nos folguedos populares é visível nos autos do Boi de Reis e Cavalo Marinho. Enfim, o ideário anarquista influencia toda a cultura popular.
O que é o nosso carnaval de rua senão um momento em que a repressão estatal e a burguesa permitem essa momentânea quebra da hierarquia? Os afoxés, congadas e maracatus, os caboclinhos e blocos de sujos, os papangus e outras figuras do carnaval lavam a alma do povo, extrapolando os limites impostos pelo sistema. Nas diversas ditaduras que infelicitaram a vida do povo brasileiro, era durante o carnaval que se permitiam as críticas mais contundentes aos ditadores e às condições de vida da população. Brincando, o povo do país da ginga, do drible de corpo, do molejo do samba, dos passos codificados do terreiro e da malícia do golpe da capoeira, com seus cânticos, ritmos, danças, instrumentos, figurinos e adereços característicos, celebram em forma de procissão, de romaria, de roda, de bloco ou de desfile, sua alegria de viver e sua esperança de superar as correntes da escravidão, em busca da verdadeira liberdade, sempre negada e usurpada.
Toca do Leão
por Fábio Mozart