Cordel da madrugada
Boquinha da noite, eu começo a sentir os braços de Morfeu me puxando para as terras dos devaneios. Nunca mais dormi como antigamente. Na pandemia, aquela maneira leve de viver a vida despareceu, por enquanto. Com a cabeça meio insana pelas variantes e variedades desse novo e enfermiço mundo, muitos de nós passamos a sofrer do distúrbio do sono. Dificuldade em adormecer ou manter o sono. Enfim, durmo pouco e acordo à meia-noite. Não consigo voltar a descansar.
Com os ponteiros do relógio biológico abilolados, a gente apela para a medicina ayurvédica, o chá da vovó e os filmes hiper-reprisados da TV. Sem efeito. Fora do meu ritmo biológico natural, acabo ligando o computador. Daí sai a produção da meia-noite. Crônicas, roteiros de programas, poemas e matérias jornalísticas. Estou me acostumando a operar nessa frequência, até quando os galos acordam e começam a dar um ritmo diferente à madrugada, junto com os primeiros passarinhos. Foi assim que escrevi dois folhetos neste janeiro. Começando às doze horas, antes das quatro já tenho redigido o cordel, revisado, bolado a capa e escrito a matéria para nossas mídias digitais. Antes das cinco da matina, a notícia do meu novo cordel já está nas minhas redes sociais. Tudo urgente como nas antigas. Nossos ancestrais cordelistas recebiam a notícia, passavam a noite compondo o cordel, pela manhã encaixavam o texto com os tipos móveis, montavam a chapa e imprimiam nas velhas impressoras manuais. Enquanto isso, o gravurista já criava a xilogravura da capa que era justaposta no clichê. Meu capista de plantão é o art designer Sérgio Ricardo Santos, também colega de vigília madrugada afora. Vamos combinando a arte, acertando as engrenagens da criação para, no final da noite, dar por aprovada a capa do folheto.
O último cordel leva o título de “Elegia para Solânea”, resenha breve do livro “Um olhar sobre Tancredo de Carvalho e outros solanenses”, do engenheiro e escritor Wolhfagon Costa. Li o livro que Ofinho me emprestou em um dia. À noite, no começo do dia solar, escrevi o cordel sobre esta obra que ele dedica “a todos os solanenses que, anônimos, não fazem parte da história oficial, mas que contribuíram e/ou contribuem para a construção de nossa Solânea”. Ele dedica o livro a vultos ilustres de Solânea, entre os quais, Manuel Batista Medeiros, citado no meu folheto:
Manuel Batista Medeiros
Disse assim, com exaltação:
“Em Solânea não se entra
Sem expressar emoção
De Solânea não se parte
Sem levar a quota-parte
De feliz recordação”.
Outro a merecer destaque no livro de Wolhfagon Costa é o advogado Arnóbio Viana, Consta que Arnóbio andava se queixando de sua capacidade limitada de produzir arte, conforme li no seu perfil biográfico em um site literário. Assim registrei no cordel:
“Não sou atleta ou poeta
Não canto, não danço ou pinto
Não tenho talento algum
Da arte não tenho instinto
Me desculpo, pelo menos
Não sou desses obscenos
E sou sincero, não minto”.
Fechado no meu quarto de quarentena, vou assim viajando para além das engrenagens naturais do corpo. Conforme os manuais de autoajuda sanitária, à noite liberamos melatonina, para dormir. De manhãzinha, vem a dose de cortisol, pra pular da cama e cuidar da vida. Misturei esses períodos, o corpo perdeu o controle. Minhas madrugadas não têm melatonina, e sim altas doses de fantasia desprendida dos círculos de órbita da realidade. Gosto de pensar que reinvento os ciclos convencionais e desmistifico a biologia. Sendo que, na realidade, sou apenas um folhetista insone se confrontando toda noite com sua limitada capacidade de idealizar o delírio e domesticar a imaginação, conforme atesta Arnóbio Viana sobre si mesmo.