TOCA DO LEÃO

Agonia da abelha fantasma

Uma amiga sofre de zumbido nos ouvidos. Vive na maior aflição com essa espécie de ilusão auditiva, a sensação sonora de que um enxame de abelhas zune em seus tímpanos dia e noite. Já tentou de tudo para se livrar do desconforto: remédios, terapia de som, alteração na dieta, estimulação magnética transcraniana e terapia de habituação. Um otorrino mais radical indicou a supressão pura e simples do nervo auditivo. Nítida burrice de profissional incompetente e sem ética. O zumbido não acontece no sistema auditivo, mas no cérebro do paciente. Por isso se chama ilusão auditiva. Outra solução proposta pelo mesmo especialista: procurar cura espiritual. Talvez tenha percebido um tipo de energia especial emanando da paciente. Quem sabe, o médico seria um sensitivo a perceber as correntes de luz vindas da aura de minha amiga. Daí teve a clarividência de captar os centros energéticos nesse campo de natureza misteriosa que os iniciados chamam de energia consciencial. Por isso ele sugeriu uma cura para-psíquica. Quem sabe? “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que a vã filosofia dos homens possa imaginar, incluindo as cirurgias extrafísicas”, diria um William Shakespeare kardecista.

Cerca de 30 milhões de pessoas, só no Brasil, reclamam desse som desagradável nos ouvidos, conforme vejo na Wikipédia. A ciência moderna patina sobre o tema. No meio da multidão, na praia, no consultório, em qualquer lugar, as abelhas fantasmagóricas continuam zumbindo e acelerando a ansiedade das pessoas que sofrem desse mal. E de repente, chega a pandemia e com ela a necessidade de ficar em casa. Para muitos, alívio do estresse, relaxamento. Para quem sofre do tinnitus, o termo técnico para esse mal, a qualidade de vida só piora. É quando a pessoa se vê frente a frente com os desafios do autoenfrentamento, encarar todas as horas do dia com suas neuras, seus problemas fisiológicos e psicológicos sem o desafogo do convívio social, e o zumbido atormentando cada vez mais. Esse enxame de abelhas pode ser quase detido através de implantes cocleares, conforme ensina o especialista Dr. Luciano Moreira. É localizar a abelha mestra, a Rainha da colmeia fantasma, e cortar seu vínculo com o enxame. Não sei como se faz isso e nem tenho certeza de que acredito no método.

O mundo está mudando, e as teorias birutas dominam mais e mais pessoas sem noção. Precisa-se explicar melhor esses fenômenos onde cresce cada vez mais o número de seres que acreditam na terra plana, entre outras bobagens como o desprezo pela ciência e bizarrices semelhantes. Conta-se o caso de um rapaz portador do tinnitus, abalado com as informações chegadas no grupo do Whatsapp dando conta de que, por trás desse zumbido, há uma organização secreta internacional, da Rússia ou da China, que manipula alta tecnologia e marca pessoas ao redor do mundo, as quais podem ser uma ameaça à ordem mundial porque são anjos malévolos de alta visão conscienciológica destinada à reeducação consciencial para tornar as pessoas comunistas, ateias e homossexuais. Confesso que eu mesmo cheguei a conceber conceituações desse nível, mas isso se deu ao final da minha adolescência. É como afirma o desconhecido filósofo de Twitter, Thiago Amorim: “Quando você é jovem, tudo faz sentido porque você é burro”.

Apareceu na minha quebrada um velhote alto, barbudo, sujo e maltrapilho, além de gago. Ele sofria de um zumbido insuportável. Seu método de atenuar o sofrimento era bater na própria cabeça com uma tábua. Jamais soubemos de onde veio esse senhor. Passou a morar numa casinha sem energia e água encanada onde eu e meu grupo de birutas montamos uma gráfica. Descobrimos que o velho Baiano, como o chamávamos, sabia ler e falar inglês, francês e alemão. Além disso, a memória do Baiano era incomum. Ele conseguia decorar qualquer texto, automaticamente. Memorizou a Bíblia, recitava de trás pra frente. Um mendigo poliglota e portador de memória fantástica, com um chiado crônico no ouvido. Só podia ser um extraterrestre. Morreu sem revelar seus segredos. O velho assombroso e irreal talvez fosse portador de um câncer na cabeça, tumor que processava os mecanismos intelectivos do cérebro. O zumbido, quem sabe, seria proveniente do neoplasma maligno. Foi enterrado como desvalido, sem direito a autópsia decente.

Depois da morte dessa figura, eu comecei um conto assim: “Ele veio do planeta dos inconscientes reprimidos, encarou o mundo com espanto, se deixou absorver pelo zum-zum-zum da abelha fantasma e saiu por aí fuçando as latas de lixo, caminhando devagar, sereno e manso, sem rumo, como uma barata que sabe que não fora concebida para ser uma trivial barata”.

Fábio Mozart

Fábio Mozart transita por várias artes. No jornalismo, fundou em 1970 o “Jornal Alvorada” em Itabaiana, com o slogan: “Aqui vendem-se espaço, não ideias”. Depois de prisões e processos por contestar o status quo vigente no regime de exceção, ainda fundou os jornais “Folha de Sapé”, “O Monitor Maçônico” e “Tribuna do Vale”, este último que circulou em 12 cidades do Vale do Paraíba. Autor teatral, militante do movimento de rádios livres e comunitária, poeta e cronista. Atualmente assina coluna no jornal “A União” e ancora de programa semanal na Rádio Tabajara da Paraíba.

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