TOCA DO LEÃO

Adotei um boneco de ventríloquo

Apareceu na minha calçada. Estranhamente. Boca corrompida, absurdamente insólito. Fiz uma foto e deixei o boneco onde estava, talvez esperando o caminhão do lixo. Emiti comunicado urgente para meus contatos no Facebook: “acabei de encontrar uma cabeça de boneco, o que eu faço? Será um boneco do vodu? Um amuleto? Um mal presságio?” Supersticiosos aconselharam: “deixa onde está e esquece essa porra!” Tentei pensar como uma anta: “E se for esconjuro de algum vizinho malfazejo?” Faz sentido, no país onde cruzar com gato preto atrai urucubaca.

O inconsciente coletivo verde, amarelo e carmim ta cheio de crendices. Abala os nervos de qualquer paspalho. Voltei à cena da transgressão porque gosto de bonecos e também porque um boneco sem vida envolve a vida e a vida contém lances enigmáticos. A quem pertenceu? Qual sua missão artística? Seria de fato um fantoche ou um manequim desgarrado do corpo? Desconfio de um vizinho que é artista de rua. Mexe com boi de reis, maculelê, ciranda, caboclinhos e fandangos. Quem sabe, a cabeça teria se extraviado de seus entulhos. Não sei se pratica a ventriloquia.

Sei que é magniloquente. Fala pelos cotovelos. Talvez pelo nariz. O fato é que o boneco misterioso fica sendo uma obra de arte no seu feitio ordinário de lã de vidro ou algo parecido. Por ser intrigante, guardar segredos, é arte. Se fosse nítido e patente sua origem, não seria arte. Definido seu caráter cultural e refinado, decidi adota-lo. Ficou no meu escritório, contemplando a desordem com seu olhar vazio e querendo proferir palavras com sua boca aberta sem articulação. Um artefato na sua simplicidade que é muito complexo. Tenta falar do indizível.

O filósofo Sartre andou dizendo que o significado de um objeto é o próprio objeto. Dependendo de quem olha, pode ser traduzido de diversas maneiras. Ou foi mais ou menos o que disse o filósofo. Às vezes não entendo a filosofia. Nem a filosofia me entende bem, se é que assimilam o que eu tentei comunicar. De repentemente sou assim feito esse boneco: abro a boca, quero proferir altas verdades e brilhantes ideias, falta alguém pra manejar as articulações do fantoche.

Sentimentos, sensações abstratas, divagações, lembranças de antigos bonecos de babau construídos com mulungu, imagens alegres ou sombrias. Tudo a partir da contemplação deste boneco. Faces multifacetadas da vida do povo, da arte popular. Em um nível mais alto de significado, pode ser um símbolo do nosso tempo. O discurso fascista da censura, a tentativa de assassinato da democracia. Um grito parado no ar, um vácuo. Daqui a vinte anos talvez a gente compreenderá o que fizeram com a cultura brasileira. Enquanto isso, o boneco e sua cabeça vazia e sua boca aberta sem discurso fica me lembrando do dever de tentar exprimir essa inquietação.

Ouça nossa Rádio enquanto você navega no Portal de Notícias


  Podcast Dez Minutos no Confessionário

Fábio Mozart

Fábio Mozart transita por várias artes. No jornalismo, fundou em 1970 o “Jornal Alvorada” em Itabaiana, com o slogan: “Aqui vendem-se espaço, não ideias”. Depois de prisões e processos por contestar o status quo vigente no regime de exceção, ainda fundou os jornais “Folha de Sapé”, “O Monitor Maçônico” e “Tribuna do Vale”, este último que circulou em 12 cidades do Vale do Paraíba. Autor teatral, militante do movimento de rádios livres e comunitária, poeta e cronista. Atualmente assina coluna no jornal “A União” e ancora de programa semanal na Rádio Tabajara da Paraíba.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo