TOCA DO LEÃO

Acendendo a memória de Aniceto de São José

Começo de tarde em um bar “pé sujo” na cidade Salgado de São Félix, agreste da Paraíba do Norte, o cantador repentista Manoel Xudu terminou assim um verso: “Nem caixão de ouro empata o defunto apodrecer”. Poucas horas depois ele morreu de cirrose hepática e foi direto para o salão do infinito com sua viola feita de cedro rosa, sentado no firmamento esperando seu amigo e conterrâneo José Aniceto de Brito, morador de São José de Pilar. Há uma trilha que leva ao balcão de bodega onde agora se encontra Xudu, mas só quem conhece esses corpos celestes especiais através do espaço-tempo-sonho-fantasia é gente espectro avejão igual Aniceto de São José, com quem travei uma conversa sobre fogo, água, terra, ausência de mar, pau de viola, festa de cantoria e verso genial durante uma noite inteira na calçada de sua casinha. Dei de garra do meu micro gravador, tomei uma talagada de cana de cabeça como quem se reúne em volta da fogueirinha para um lero com profetas, adivinhos, pinguços, visionários e matutos multiscientes, entre eles um poeta mágico que “tira de onde não tem e bota onde não cabe”. Captada a cavaqueira, perdi a gravação. Séculos depois, encontrei a fita, e por gentileza de Azenildo Cabeção, também conterrâneo de Manoel Xudu, publiquei em livro a confabulação. Degravando a fita:

– Eu vou conversar aqui com um cidadão que conhece a vida de Manoel Xudu. Como é seu nome, senhor?

– José Aniceto de Brito.

– O senhor tem quantos anos?

– Setenta e seis completando.

– O senhor conheceu Manoel Xudu? Fale um pouco das origens dele.

– Manoel Xudu nasceu na fazenda Riachão, pertencente a São José de Pilar, filho de João Lourenço da Silva, que tinha o apelido de João Xudu, e Maria Umbelina da Conceição, com o apelido Maria Xudu, também, agricultores analfabetos.

– Como foi a infância de Xudu em São José?

– Manoel Xudu era danado desde pequeno. Aqui tinha um velho chamado Geraldino, que apareceu aqui. Ele não gostava da sua violinha e comprou outra viola. O pai de Manoel Xudu podia comprar uma violinha pra ele, mas não comprou porque o velho não queria que ele cantasse, dizia que essa profissão de cantador era uma profissão pra vagabundo, o velho não queria… Ele pegou um pau de mulungu, ajeitou, fez a viola, pegou aqueles arames vermelhos das violas dos cantadores, botou na viola… Admirava quem visse, ele parecia que tava tocando numa dinâmica, admirava todo mundo. Aqui tinha um tal de Zé Damião que andava com um berimbau aqui na rua, um maluco cantando com aquele berimbau pra ganhar bicada de cachaça, aí Manoel Xudu chegou a ir lá. Ele tava tocando, aí Xudu viu e fez um instrumento igualzinho. Oxente, quando o Xudu cantou parecia que era uma sanfona tocando, ele solou no berimbau a Carolina, que diz assim: “Carolina foi ao samba, Carolina, pra dançar o xenhenhém…” Todo mundo admirava…

– Me diz uma coisa: é verdade que Manoel Xudu começou a fazer parte do cangaço?

– Nunca. Foi não, senhor… Nunca na vida.

– Mas surgiu um tempo uma conversa que ele gostava desse negócio. Que aqui em São José era coito de cangaceiro naquele tempo.

– Nunca gostou. Manoel Xudu era um amigo inofensivo, ele era inofensivo, era uma pessoa que nasceu com a índole tão boa, parece que já nasceu com aquela… aquele toque vindo do Criador, do Autor. Ele podia fazer o bem, o mal não era capaz de fazer. Esse negócio de cangaço não existiu não, ele nunca se meteu nisso.

– Mas, ele chegou a cantar pra algum cangaceiro?

– Chegou não, porque o cangaceirismo não havia mais, já tinha se acabado… Mas ele chegou pra cantar em salões civilizados, pra tenente, pra prefeitos, pra classe civilizada, não é? Pra doutores, fazendeiros, porque o homem era uma coisa, o homem era prestigiado onde chegasse.

(Do livro “Manoel Xudu, o Príncipe dos poetas repentistas” – Fábio Mozart – Edição do autor)

Ouça nossa Rádio enquanto você navega no Portal de Notícias


  Podcast Dez Minutos no Confessionário

Fábio Mozart

Fábio Mozart transita por várias artes. No jornalismo, fundou em 1970 o “Jornal Alvorada” em Itabaiana, com o slogan: “Aqui vendem-se espaço, não ideias”. Depois de prisões e processos por contestar o status quo vigente no regime de exceção, ainda fundou os jornais “Folha de Sapé”, “O Monitor Maçônico” e “Tribuna do Vale”, este último que circulou em 12 cidades do Vale do Paraíba. Autor teatral, militante do movimento de rádios livres e comunitária, poeta e cronista. Atualmente assina coluna no jornal “A União” e ancora de programa semanal na Rádio Tabajara da Paraíba.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo