OPINIÃO

A esquerda não morreu, mas perdeu as ruas

O fracasso de público das manifestações do 1º de maio, mesmo com a presença de Lula em São Paulo, em contraste com a grande manifestação bolsonarista na avenida Paulista, em 25 de fevereiro, são sinais de que a esquerda brasileira perdeu as ruas para a extrema-direita. Nas últimas eleições, Lula ganhou graças a grande votação que obteve nas pequenas cidades do Nordeste. Até ganhou de Bolsonaro na capital paulista, por 53% a 46%, mas hoje é o bolsonarismo quem coloca mais gente nas ruas das grandes cidades. Qual a explicação de tal fenômeno?

O PT surgiu como um partido contestador do sistema político, econômico e social brasileiro, o qual era e ainda é extremamente desigual e excludente da população pobre e de classe média. O PT foi criado para que a política, o poder e os direitos deixassem de ser exclusividade dos ricos. Com esta plataforma, o partido cresceu nas grandes cidades, berço dos trabalhadores organizados e da classe média. Nas eleições que Lula perdeu (89,94 e 98), ele ganhava nos grandes centros e perdia nas pequenas cidades. A esquerda era a esperança do povo organizado dos grandes centros. Perdeu as três primeiras eleições presidenciais, mas era incontestável nas ruas, porta-voz da insatisfação com o sistema plutocrático, no qual tudo era controlado pelos ricos (política, justiça, meios de comunicação, etc.).

Em 2002, a esquerda ganhou as eleições presidenciais pela primeira vez, estreando uma política de alianças com setores da burguesia. Obteve grande sucesso no governo a partir da criação de programas sociais que diminuíram a desigualdade e criou direitos para as parcelas da população excluída. A esquerda mudava o país, mas, amarrado pelas alianças, não o suficiente para atender às imensas expectativas que gerou. Para atendê-las completamente, teria que mexer nos privilégios dos ricos, o que as alianças com parcelas da burguesia não permitiam. Aos poucos, a esquerda foi se domesticando ao sistema, perdendo sua identidade contestadora, cada vez mais confundida com a política tradicional que combatia. É nesse ínterim que surge a extrema-direita.

A extrema-direita, aqui e no mundo inteiro, se apresenta como antissistema, aquilo que a esquerda era no passado. Com um discurso conservador, mas radical contra todos os políticos, ela engana direitinho grandes parcelas da classe média e dos trabalhadores. É enganadora porque, apesar de criticar o sistema político, é completamente apoiadora do sistema econômico vigente. Defende mais capitalismo, mais livre mercado e é contra direitos e programas sociais para os trabalhadores e excluídos. Apesar disso, foi e ainda é vista como esperança de mudança do sistema. Daí ter começado a disputar e hoje ganhar as ruas da esquerda.

A esquerda não governa com sua plataforma. O centrão, que representa uma parcela da burguesia, apesar de participar do governo, vota contra o governo constantemente quando considera que a pauta é de esquerda. As políticas sociais que o governo consegue executar são insuficientes para abrandar a insatisfação dos pobres e da classe média com o sistema. Apesar dos avanços, o povo ainda vive muito mal e culpa os políticos por isto. Lula virou apenas um bom administrador do sistema podre, enquanto o bolsonarismo, apesar de causar o medo de um autoritarismo, ainda é, para muitos, a esperança de mudança do sistema. Por isto que Lula, o bom administrador, ganhou a eleição, mas é a extrema-direita quem mobiliza os insatisfeitos com o sistema, como fazia a esquerda no passado.

Qual a solução para tal dilema? Não defendo aqui que a esquerda rompa as alianças que tem com o centrão e parcelas da burguesia, mas precisa procurar se distinguir do sistema. Uma boa forma de fazer isso agora é lançar candidaturas próprias nas eleições deste ano no maior número de cidades possível. Se o compromisso prioritário dos partidos da burguesia é com os empresários, apesar de participar do governo, a esquerda também não tem obrigação de apoiar todas as candidaturas dos partidos burgueses para manter as alianças do governo Lula.

Vamos aprender com os exemplos que vem de fora. Na França, o Partido Socialista, tradicional de esquerda, perdeu quase todo seu eleitorado para o partido França Insubmissa, mais radical, felizmente. Na África do Sul, o partido de Nelson Mandela, que acabou com o Apartheid, perdeu a maioria absoluta que tinha há trinta anos porque não atende mais plenamente às expectativas e demandas da maioria do povo que ainda vive na pobreza. Espero que Lula e a esquerda ousem mais para que não se transforme de bom administrador, que já é pouco para sua história, em apenas mais um líder e agrupamento político do sistema. O povo quer mais e a esquerda é a única que pode fazer mais porque a proposta de mudança da extrema-direita é uma farsa. Para isso, a esquerda precisa voltar a contestar o sistema e não apenas administrá-lo.

Por Eziel Inocêncio

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