A banalização da morte
É sempre muito pesarosa a vivência do luto pela perda de pessoas queridas. Infelizmente a morte tem sido uma companheira cotidiana da contemporaneidade. Mais de quatrocentos mil brasileiros já perderam a vida vitimados pelo coronavirus. A dor emocional se torna maior quando ficamos impedidos de cumprir rituais importantes nas nossas crenças religiosas, tais como o velório e o sepultamento, em razão da elevada possibilidade de contágio que a doença possui. O luto é um processo fundamental e necessário para que o vazio deixado por uma perda importante possa ser preenchido.
A pandemia do covid-19 tem provocado uma ruptura na vida das pessoas, deixando-as subitamente enlutadas; há perdas tanto materiais quanto psíquicas para a população. Eles afetam padrões da comunidade e suas redes de apoio psicossocial, colocando em risco a capacidade de enfrentamento individual e coletivo. É um evento traumático que leva à perda do senso de segurança e proteção. A morte está invadindo nossas vidas sem pedir licença.
Diariamente somos impactados pelo noticiário trágico que nos informa a ocorrência de três mil mortes em média. Se por um lado, essa macabra estatística aterroriza boa parcela da população, de outro modo leva o país a viver o cenário da banalização da morte. Lamentavelmente, temos verificado o risco de que o enlutado seja visto apenas como “mais um”. A ideia propagada por autoridades públicas de que as mortes provocadas por essa crise sanitária são inevitáveis, tem contribuído para que se fortaleça o entendimento de que esses fatos devam ser minimizados como ocorrências dramáticas.
Parte da população cansada do vírus, até por estímulo de lideranças políticas, se sente motivada a seguir a vida como se ele já não fosse mais grave, circulando sem máscaras ou se aglomerando. Somos compelidos a concluir que a nossa sociedade está doente e alienada, desprezando valores éticos de preservação da vida. Por consequência, as mortes se intensificam e passam a ser consideradas apenas um detalhe. Há um embotamento cognitivo que nega o potencial gravoso da doença, o que faz com que alguns se achem “superiores”, “fortes” e que, por isso mesmo, não estão vulneráveis ao contágio. Concordam com a linha de raciocínio da “imunização de rebanho”. Desprezam a responsabilidade com a própria saúde e a dos outros.
A indiferença ao sofrimento das famílias que perderam entes queridos demonstra uma ausência de compaixão e respeito. Além da crise sanitária, estamos vivendo uma preocupante crise civilizatória. O cuidado com a vida, o direito ao luto e o respeito aos mortos, são, antes de tudo, questões humanitárias. Percebe-se o desvio do necessário contexto sócio, ético e cultural, que as circunstâncias nos impõem. O negacionismo que orienta esse comportamento, abre espaço para uma cultura necrófila, insensível à vida. A repetição cotidiana que ceifa a vida de centenas de brasileiros não deve ser vista como normal, como temos observado.
Ainda que alguns não queiram entender assim, essa é uma questão política contemporânea, que demanda reflexões que objetivem um reaprendizado de uma cultura em favor da vida.
Rui Leitão