Memórias de um “capa gato”
O dicionário ensina que “capa gato” é o técnico agrícola, perito em agropecuária, o profissional de nível médio em ciências agrárias. Claro que se trata de um termo discriminatório. O “pai dos burros” até acrescenta um exemplo do uso da expressão: “Aquele fulaninho, metido a veterinário, não passa de um capa-gato”. Em recuados tempos eu fui “capa gato”, aluno interno no Colégio Agrícola Vidal de Negreiros, na cidade Bananeiras, onde atualmente fixei residência na rua do Galo, esquina com Solânea. Neste final de semana li o livro do senhor Manoel Luiz da Silva, “Satuba, escola de muitos… privilégio de poucos…”, sobre sua experiência de vida como aluno de uma escola agrícola em Alagoas e como acabou transferido para o Colégio Agrícola Vidal de Negreiros, em Bananeiras, no ano de 1963. Não fomos contemporâneos nessa vivência de “capa gato” na terra de Oscar de Castro, fundador da Faculdade de Medicina e membro da Academia Paraibana de Letras, falecido em 1970. Mas me identifiquei deveras com seus relatos sobre adaptação ao contexto de uma escola desse tipo, os problemas de relacionamento, comportamentos adequados e inadequados de alunos, professores, funcionários e diretores, as habilidades sociais dos alunos para driblar as carências materiais e afetivas e todo comportamento social característico de um grupo de jovens em um ambiente estranho, convivendo com colegas oriundos de diversas partes desse país, com suas culturas específicas, seu modo de ver a vida, seus hábitos e temperamentos individuais.
Prezado senhor Manoel Luiz da Silva, filho da cidade União dos Palmares: suas memórias tocaram meu emocional de colega “capa gato” e de ferroviário, impactado ao ler suas narrativas sobre como o trem influenciou sua vida de estudante pobre nas Alagoas e na Paraíba. Na região da mata da “terra dos marechais”, o trem, percorrendo o trilho da grande importância social e econômica que detinha na época, com sua locomotiva a vapor e seu apito angustiado, moldurava a paisagem entre vales, curvas e grotas de um interior com suas incríveis belezas naturais e sociais de um povo pobre, mas que se nivelava com todos os extratos da população, “de forma indiscriminada”, como passageiros do trem, levando e trazendo encomendas, mercadorias, caixões de defuntos e ricos e pobres, recados e saudades. O estudante que pagava meia passagem fazia do trem uma extensão de sua casa e da escola, aproveitando para criar também seu próprio parque, sua praça e seu jardim para os namoricos nos vagões.
Como antigo telegrafista da rede Ferroviária Federal, adorei o relato do aluno que era filho de chefe de estação e dominava transmissão de mensagens pelo código Morse. Pois o telegrafista mirim ensinou aos seus colegas os significados dos sinais curtos, longos e traços. Com isso, passava e recebia cola durante as provas, manipulando na própria carteira, usando o lápis como ferramenta. O professor notou a coincidência da resposta dos quesitos e acabou desmantelando o plano dos “telegrafistas”.
Em Bananeiras, Manoel foi feliz. “Uma cidade rodeada de serras e paisagens bucólicas, imensos campos de bananeiras, com acesso muito difícil. Se não fosse o trem furando o túnel da serra da Viração, seria quase impossível chegar àquela cidade com suas ruas sinuosas e enladeiradas, seus belos casarões, resquícios de um passado rico dos senhores do café”. Manoel e seus vinte e seis colegas alagoanos foram recebidos com calor humano, apesar do clima frio e úmido. “Seu povo hospitaleiro, sua juventude atenciosa e participativa fazia com que a gente não sentisse tanto o impacto da mudança, e logo tomávamos parte da vida social da pequena e agradável cidade paraibana”.
Manoel é um cidadão que gosta de livros. Em Bananeiras, foi por muito tempo diretor da Biblioteca Pública Municipal, colaborando com a cidade na divulgação de sua história e preservação do rico patrimônio material e imaterial do município. O ator francês Marcel Marceau representava mímica onde espelhava a vida de uma pessoa em apenas um minuto. Manoel representa sua vida de estudante e ativista cultural em 170 páginas, lidas num domingo por este seu colega “capa gato” e também cultor dos livros, pelo que agradeço ao nobre confrade a chance de reviver minha vida como aluno dessa instituição de ensino em Bananeiras, lugar que escolhi para fechar o ciclo da existência.