Desobituário
As cartas não mentem jamais. A internet, entretanto, engana mais do que cachorro de fateira, como atestava minha vó Joaninha. Claro que ela não conheceu a grande rede de computadores, mas foi íntima das fateiras, mulheres especialistas na arte de tratar e limpar as vísceras dos animais abatidos. Havia acordado às quatro da manhã, hora em que o silêncio e a cabeça fresca proporcionam mais clareza das ideias. Aproveito para escrever e ler as comunicações dos seguidores, nessa hora em que, segundo o oráculo africano Ifá, o orixá Orumilá perambula pelas quebradas do planeta, ele que é a divindade da profecia e da adivinhação. Lendo as mensagens, veio o choque: morreu um amigo de infância, uma criatura que andou comigo na igreja, na camaradagem da escola, no apego pela arte musical e no afeiçoamento de companheiro pela vida afora. Ele, músico completo, maestro, violonista e pianista, dedicou-se a louvar seu Deus na Igreja. Eu, tocador de violão medíocre de mesa de bar, incrédulo, estilos de vida completamente dissemelhantes, mas estivemos juntos sempre, na indubitabilidade desse companheirismo. “O homem que tem muitos amigos pode congratular-se, mas há amigos mais chegados do que um irmão”, proverbiou o rei Salomão.
Constatado o fato consumado, mais ou menos recomposto da emoção, passei a registrar as condolências em comunicado aos mais próximos. Antes de publicar a mensagem, salvou-me da rata o velho senso de repórter, a mania de ouvir mais de uma fonte. Liguei para um amigo comum e escapei da dança dos erros. Nosso cordial colega não havia sucumbido, apesar de travar luta renhida com doença crônica. Chorei de novo, por necessidade urgente de desafogar o impacto da primeira notícia, e refiz o aviso eletrônico. Cheguei a ficar tão espontâneo e exultante que acabei redigindo uma peça de certa risibilidade, vazada nos seguintes termos:
“Desobituário – Cumpre-me o fortunoso dever de participar aos amigos e parentes de fulano de tal, irmão do professor sicrano e membro efetivo e emérito da fraternidade da qual sou Chefe Supremo, que o citado não foi a óbito. Uma vez que o falso finado vem recebendo ultimamente precárias alegrias de receber amigos em sua residência, o mesmo agradece a bondade, se puder dar uma passada e levar seus cumprimentos, expressar suas alegrias por se constatarem falsas as suposições do seu passamento. No intuito de alcançar objetivos práticos, recomenda-se levar alguma coisa sonora ao gosto do dono da casa, tipo Mozart, Chopin, Beethoven, Schubert ou Rossini, evitando-se, por precaução, o compositor russo Tchaikovsky, porque durante vários séculos a Rússia vem exaltando seus artistas, constituindo-se investidas para o controle e poderio global, o que está fora da cartilha atualizada do xenofobismo idiota predador.”
Quanto à morte propriamente dita, eu mesmo não a espero dia e hora nenhuma. Sempre soube, no entanto, e da mais penosa forma, que, mesmo sem convocação, ela é infalível. E merece respeito. Como bem exprime Ana Dubeux: “Faça um favor ao mundo: não mate a morte. Fale sobre ela; escreva sobre ela. Respeite a importância e o tamanho dela na vida de alguém. Tão viva quanto qualquer outra condição natural da existência humana, a morte é uma possibilidade real e concreta no amanhã de todos nós e de todos os que amamos. Por essa razão, havemos de aprender a lidar com os barulhos e os silêncios que a sucedem e que também a antecedem.”
Acabei de ler “Viver para contar”, um livro que sempre me interessou porque nele, o grande Gabriel García Márquez se aprofunda nos mistérios do seu ofício a partir das vivências no mundo fantástico das Américas, particularmente de sua Colômbia. Em “Viver para contar”, Gabo confessou: “Não me interessava a glória, nem o dinheiro, nem a velhice, porque tinha certeza de que morreria muito jovem e no olho da rua”. Morreu aos oitenta e sete anos, com glória e pecúnia. Meu amigo falsamente morto irremediavelmente precisará de um obituário, e se for eu o autor da peça sobre seu desaparecimento, se antes eu próprio não for o inscrito no livro dos defuntos, pretendo recitar Ariano Suassuna:
Ela virá – Mulher – aflando as asas,
com o mosto da Romã, o sono, a Casa,
e há de sagrar-me a vista o Gavião.
Mas sei, também, que só assim verei
a coroa da Chama e Deus, meu Rei,
assentado em seu trono do Sertão.