TOCA DO LEÃO

Histórias despretensiosas de um presumido

A arte mais antiga do mundo foi homenageada em 19 de setembro, dia em que lembrei das minhas peripécias no mundo do teatro amador nas décadas de 70/80/90. Naquela data se festeja o “Dia do teatro acessível” no Brasil. No meu podcast “Dez minutos no confessionário”, lembrei fatos e nomes do Grupo Experimental de Teatro de Itabaiana, conjunto cênico fundado em 1976, com a Sociedade Cultural Poeta Zé da Luz, memorável entidade constituída por personagens emblemáticas da cultura itabaianense. Cito en passant, Jurandi Pereira Filho, Sosthenes Costa, Roberto Palhano (in memoriam), Joacir Avelino, Jandira Lucena e tantos outros jovens no esplendor de sua arte de existir enquanto jovens, porque todo muchacho é um engenheiro de sonhos que, afinal, vem a ser a argamassa da beleza e da técnica vivencial. Cada moço ou mocinha do grupo deu seu contributo para construir os espetáculos teatrais, editar o jornal, estremecer e delirar com as manifestações de protesto contra a ditadura castrense, esterilizadora como todo autoritarismo, mas que deu matéria e peso ao conjunto da cultura brasileira. A produção artística daquele período repressivo se alimentou do sentimento de resistência para reinventar as linguagens.

Nosso primeiro espetáculo foi inspirado nas matrizes da cultura popular nordestina, com a colagem “Peleja de Lampião com o Capeta”, com Idalmo Silva na pele de Lampião, atores Beto Palhano, Ecilio Rodrigues, Agnaldo Santos, Osório Cândido, Romualdo e suas irmãs Tânia, Bernadete e Palmira Palhano. Eu fiz a direção e fiquei encarregado da música, com cenário da pintora Jandira Lucena. Essa Peleja andou a Paraíba toda e estados vizinhos por vários anos, mostrando um inferno burocrático capitalista e um Lampião com ideias socialistas. O carro da censura estacionou muitas vezes nas portas dos teatros, ameaçando elenco e cortando texto. Obviamente, não faltaram coragem e medo entre os rapazes e moças do Grupo. Com meus vinte anos, escondia um passado aterrador: aos quinze, editei meu primeiro jornal, confiscado pelo prefeito e delegado por “desacreditar autoridades constituídas”.

Outros erros acumulados: fazia poemas distribuídos em folhas mimeografadas, discutia política em pequenos grupos na casa do professor trotskista, liderava pernas trêmulas e bocas secas em protestos contra a repressão aos camponeses de Alagamar. Sobre isso, o maestro Luiz Carlos Cândido lembrou outro dia, em mesa de bar, episódio lamentável para quem pretendia levar a sério a luta contra o regime. Dia de finados, fomos para a porta do cemitério de Itabaiana distribuir panfletos onde se dizia, entre outros despautérios, que “a ditadura enterra a esperança da nação e sepulta a justiça social”. Avisado, o delegado reuniu a tropa constituída pelo cabo Furico e o soldado Batalhão para invadir o campo santo em busca dos perigosos subversivos. Joacir Avelino teve a ideia de se disfarçar de defunto. Deitou numa cova aberta, arrumamos umas velas e passamos a vigilar o “falecido”. Descoberta a trama macabra, pulamos o muro e fomos discutir a defectível ação, passando do pânico absoluto para a serenidade, graças a uma cachaça muitíssimo ordinária por nome “Beba Ela”.

Depois, essa cena foi agregada ao texto da peça “O martírio do lavrador a caminho do Calvário”, espetáculo com que pretendíamos receber o Bispo Dom José Maria Pires quando veio “ouvir os clamores do seu povo” no caso de Alagamar. O próprio Dom Pelé tratou de cortar algumas cenas fortes, para “proteger a integridade dos jovens artistas”. Inconformados com essa espécie de autocensura, desistimos de encenar o sketch teatral revolucionário.

Seguiram-se quarenta e quatro anos nas vidas daqueles seres mutantes. Eu, abandonei meu teatro que não alterou as marés nem a História, mas deu asas a uma pessoa como o professor Romualdo Palhano. Nosso grupo provocou seu apego às artes cênicas e motivou sua inteligência para a pesquisa do teatro paraibano. Ele é doutor e pós doutor em teatro, estudou em Cuba, deu a volta ao mundo, mas sempre retorna ao pequeno palco onde subiu pela primeira vez, sob minha direção, declama seu prólogo e faz as pazes com o tempo.

Fábio Mozart

Fábio Mozart transita por várias artes. No jornalismo, fundou em 1970 o “Jornal Alvorada” em Itabaiana, com o slogan: “Aqui vendem-se espaço, não ideias”. Depois de prisões e processos por contestar o status quo vigente no regime de exceção, ainda fundou os jornais “Folha de Sapé”, “O Monitor Maçônico” e “Tribuna do Vale”, este último que circulou em 12 cidades do Vale do Paraíba. Autor teatral, militante do movimento de rádios livres e comunitária, poeta e cronista. Atualmente assina coluna no jornal “A União” e ancora de programa semanal na Rádio Tabajara da Paraíba.

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