O tema da ganância como sensibilidade no filme “A Grande Muralha”, de Zhang Yimou
Não é difícil pensar sobre como um espetáculo visual, ao bom estilo do chinês Zhang Yimou, insiste em permanecer em nossa memória (de curta-duração). O idealizador de “A grande Muralha” (2016) é especialista na linguagem de movimentos sincronizados, entoados por contundentes lances de câmera panorâmica, transmitindo a grandiosidade de sua inventiva aptidão para malabarismos de toda sorte.
Em resumo, o filme possui um enredo simples, sem quebras na expectativa de quem acompanha seu desenrolar. A narrativa remete ao período em que a Grande Muralha estava em construção, o que pode ter levado um montante de séculos. Mas quando estamos diante da presença de visitantes “inesperados”, como os europeus, supomos que a narrativa lida com o período das expedições ao Oriente. Diante desse quadro, há também uma aura lendária que envolve a trama, conjecturando sobre os motivos que determinaram levantar o maior muro de proteção/contenção da história humana. Um motivo real: limitar os ataques de povos da região, proteger as riquezas chinesas. Motivo lendário: a proteção contra monstros/ganância.
Em uma entrevista concedida há bem pouco tempo, o puxador de espectadores Matt Damon teceu elogios educados ao diretor dessa película. Falou sobre como seria participar de um filme repleto de mitos e lendas chinesas. O diretor Yimou foi o responsável pela cerimônia de abertura das Olimpíadas da China 2008 e que, por isso, no Ocidente se tornou notório. Willem Defoe adiciona a esse repertório de elogios uma certeza para quem conhece a finalidade da indústria do entretenimento americano, quando este aloca outras perspectivas sobre “ganância” (palavra-chave para entender a resumida lição desta narrativa cinematográfica; e termo de ordem bem conhecido pela condução política da cultura estadunidense). As palavras do ator dizem assim: “a sensibilidade chinesa e a sensibilidade ocidental na produção de um filme”. E qual é o produto de mensagem oferecida por essa narrativa?
A integração cultural resumida no esquema da “sensibilidade chinesa” e “sensibilidade ocidental” se dá por meio de conflitos insolúveis. Foi assim e assim será. As palavras ocas dos participantes desse projeto de integração em nada refletem sobre o que se passa no enredo retilíneo e monótono do filme. Talvez porque as impressões propagandeadas pela produção tivessem mais que ver sobre discurso tortuoso de unidade, do que aquilo que de fato se tem: não é por diálogo que se constrói unidade, é por ganância que existe a finalidade do conceito de unidade.
As sensibilidades da leitura anacrônica do cinema do século XXI, nesse caso, sobre a lenda chinesa disposta na narrativa, são refratárias daquilo que vemos hoje nas relações entre o Ocidente e o país asiático. Mais uma vez, nada que ver com a temática pedagógica das lendas chinesas na época em que as excursões europeias batiam à porta da casa Imperial, nem muito menos sobre o medo justificado (por isso a construção da lenda como símbolo e da muralha como defesa) dos mongóis pelo povo do lado de lá da Muralha.
A ganância chinesa sempre teve um limite simbolizado ao longo de muitos séculos, a partir da construção tático-estratégica da muralha. O que os limitava era menos o receio pelo fracasso, em não conseguir conquistar novos territórios; do que o medo em ser invadido pelos povos das estepes asiáticas. Em meio a isso, as lendas se constituem para refrear os desejos, entre eles o da ganância, a vontade de poder. Essa simbologia possui fatores a serem elencados, pois definem os graus da mensagem tecida no texto da narrativa e os desacordos com as palavras conciliadoras propagandeadas por quem fez e pensou o filme:
- A muralha é uma proteção de dentro para fora, não o inverso disso. É um limite para a ganância de quem as construiu. Sua construção é um princípio do inconsciente, uma espécie de equilíbrio, entre o que se ergue da superfície em direção aos céus (a muralha) e a mais conhecida força do repertório no imaginário da sabedoria chinesa: Yin e Yang.
- A ganância não é exclusividade de uma “sensibilidade” em particular. Ela pertence ao gênero humano, se diz no texto do filme. Portanto, a muralha só existe no limite do alcance da ganância de quem a construiu. Os povos que excursionam em assaltos até a Muralha tentam restaurar um equilíbrio anterior ao seu erguimento.
Essas duas articulações definem as formas de interlocução que podem existir, por um lado, entre a produção cinematográfica, como uma tentativa de construir diálogos entre as sensibilidade de culturas diferentes; e, por outro lado, a realização da narrativa fílmica enquanto mensagem de como a ganância é, por fim, a sensibilidade que garante essa teia sofisticada de relações que saltitam diante dos olhares do público.
Os monstros não são alienígenas. Eles são construções imagéticas e mentais das ganâncias por poder que se constituem no interior de cada cultura, na ocidental e oriental. Como ilustração da atemporalidade do tema da ganância, o Ocidente não se equivale de uma mesma construção contra os monstros que atribuímos ao Outro, ao que está do lado de fora, ao “inimigo” imigrante (signo em tempos de Donald Trump) que se avizinha dos muros que levantamos? Estas muralhas são o resultado dos nossos medos, inventados na formulação ideológica da política pós ataques de 2001. São, também, o resultado da sede de poder como instinto e, que, o cinema, na sua tessitura narrativa, entrega como mensagem involuntária
Por Jair Oliveira