MP-BA investiga suspeita de transfobia no afoxé Filhos de Gandhy no Carnaval de Salvador
Bloco tradicional restringiu participação a homens cisgêneros; decisão gerou polêmica e mobilizou entidades de direitos humanos
O Ministério Público da Bahia (MP-BA) abriu uma investigação, nesta segunda-feira (24), para apurar uma suspeita de transfobia praticada pelo afoxé Filhos de Gandhy, em Salvador. A apuração foi motivada por um comunicado do bloco que veda a participação de homens trans no desfile de Carnaval de Salvador. A informação foi divulgada inicialmente pela TV Bahia.
A polêmica veio à tona após integrantes do bloco receberem um aviso ao buscarem suas indumentárias para o desfile. No documento, a direção do afoxé justifica que a restrição está baseada no artigo 5º de seu estatuto social. “De acordo com o artigo 5º do estatuto social, só poderão ingressar na associação pessoas do sexo masculino cisgênero, por isso, a venda do passaporte será apenas para esse público”, diz o comunicado. (veja abaixo)
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O MP-BA informou que enviou um ofício à direção do bloco solicitando esclarecimentos e aguarda resposta para decidir as medidas cabíveis. A Defensoria Pública do Estado da Bahia também se manifestou sobre o caso. Por meio da Coordenação da Especializada de Direitos Humanos, o órgão afirmou que a restrição “claramente incita discriminação e preconceito contra essa parcela da população” e alertou que a medida pode configurar crime de racismo, conforme a legislação vigente. A Defensoria encaminhou um ofício ao afoxé recomendando a exclusão da cláusula discriminatória.
Repercussão e resposta do bloco
Diante da repercussão negativa, o Filhos de Gandhy divulgou uma nota na qual informa ter retirado o termo “cisgênero” do comunicado, mantendo apenas a referência ao “sexo masculino”. A direção do bloco afirmou ainda que convocará uma assembleia geral para discutir possíveis alterações no estatuto social.
“O Afoxé Filhos de Gandhy, ao longo de seus 76 anos de história, sempre teve como princípio a valorização da paz, do respeito e da tradição. Tradicionalmente, e de acordo com os preceitos religiosos que o regem desde o início, o Afoxé Filhos de Gandhy é formado exclusivamente por pessoas do sexo masculino, de toda raça, credo, cor, religião, orientação sexual, partido político ou classe social”, diz a nota.
A organização também destacou que reconhece “que a sociedade está em constante transformação e que debates sobre inclusão são fundamentais”, mantendo-se aberta ao diálogo sobre o tema.
Antra repudia decisão
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) criticou a postura do bloco. Em entrevista à TV Bahia, a secretária da entidade, Keila Simpson, demonstrou surpresa com a decisão. “Nós não podemos esperar que um bloco como esse, que acolhe tantas pessoas, especialmente aquelas que vivem em uma situação de racismo estrutural, tenha uma atitude tão radical como essa”, afirmou.
Keila também destacou que a Antra não compactua com a exclusão imposta pelo afoxé. “A ação que nós podemos fazer de imediato é repudiar, dizendo que nós não coadunamos com essas atitudes e nem com essas ações”, declarou.
História
O Afoxé Filhos de Gandhy é um dos blocos mais icônicos e tradicionais do Carnaval de Salvador, carregando uma história rica de resistência, cultura e espiritualidade. Fundado em 18 de fevereiro de 1949, por um grupo de estivadores do Porto de Salvador, o bloco nasceu inspirado nos ideais de paz e não violência do líder indiano Mahatma Gandhi, cujo nome foi adaptado para “Gandhy” na grafia brasileira.
A criação do Filhos de Gandhy ocorreu no contexto do pós-Segunda Guerra Mundial, quando o mundo ainda lidava com os impactos do conflito. Inspirados pelos princípios pacifistas e pela cultura afro-brasileira, os estivadores decidiram formar um bloco que unisse música, religião e a defesa da paz. O grupo surgiu em um momento em que o candomblé e a religiosidade afro-brasileira ainda sofriam forte perseguição e preconceito.
O bloco teve sua primeira apresentação no Carnaval de 1950, trazendo uma estética diferenciada: os integrantes vestiam turbantes brancos e túnicas azul e branca, simbolizando a paz e a pureza. O traje foi inspirado na indumentária dos marajás indianos, reforçando a conexão espiritual com os valores defendidos por Gandhi.
Afoxé e a tradição religiosa
O Filhos de Gandhy se define como um afoxé, categoria de bloco afro que leva para a rua os toques e cantigas dos terreiros de candomblé. A batida dos atabaques e o ritmo cadenciado das músicas evocam a energia dos orixás, especialmente Oxalá, considerado o senhor da paz e da sabedoria. Por isso, a cor branca domina as vestimentas e rituais do bloco.
Ao longo dos anos, o grupo consolidou sua identidade dentro do Carnaval baiano, sendo reconhecido como o maior afoxé do Brasil. A influência do candomblé é tão marcante que, antes de sair para os desfiles, os membros passam por um ritual de purificação nos terreiros.
Aos poucos, o Filhos de Gandhy foi se tornando mais do que um bloco de Carnaval. Ele se transformou em um símbolo da cultura afro-brasileira e da resistência negra, com influência em diversas expressões artísticas e musicais. Muitos músicos famosos se associaram ao grupo ao longo dos anos, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Carlinhos Brown e Margareth Menezes.
Com o crescimento da visibilidade do bloco, a tradição foi se espalhando para outras cidades e até para fora do Brasil. Hoje, existem núcleos do Filhos de Gandhy em São Paulo, Rio de Janeiro e até na Europa, reunindo admiradores da estética e da filosofia do grupo.
Preservação da identidade
Mesmo com as mudanças do tempo, o bloco mantém suas tradições vivas. Apenas homens podem se tornar integrantes e vestir a indumentária oficial. O uso do turbante, a aplicação de perfumes típicos (como o alfazema) e os cantos em iorubá são preservados como elementos fundamentais da identidade do grupo.
Além do aspecto cultural e religioso, o Filhos de Gandhy também realiza trabalhos sociais e educativos, promovendo palestras, eventos e ações voltadas para o fortalecimento da comunidade negra e a valorização da ancestralidade africana.
Filhos de Gandhy no Carnaval
O bloco tem presença garantida no Carnaval de Salvador e desfila principalmente nos circuitos Osmar (Campo Grande) e Dodô (Barra-Ondina). Seu cortejo arrastado, com milhares de homens vestidos de branco entoando cânticos sagrados, é um dos momentos mais marcantes da folia baiana.
A cada ano, o grupo escolhe um tema para homenagear divindades do candomblé ou destacar aspectos da cultura afro-brasileira.Este ano, por exemplo, o tema será “Ogum – O Senhor do Ferro, dos Metais e da Tecnologia”, ressaltando a conexão entre a espiritualidade e a modernidade.
Legado
O Afoxé Filhos de Gandhy segue como um dos principais patrimônios culturais da Bahia, representando a resistência, a paz e a força da herança africana no Brasil. Seu legado transcende o Carnaval, sendo um símbolo de orgulho e identidade para milhares de pessoas que se conectam com sua filosofia e espiritualidade.
Com Brasil 247